James Joyce (1882 - 1941)
A solidão na obra
Manuel Soares Bulcão Neto
De fato, entre os artistas e escritores há forte tendência,
intencional ou não, no sentido da margem, para a proscrição social. Primeiro,
porque o processo criativo somente se desenvolve quando o criador encontra-se
em estado de solidão, tanto no momento da concepção mental da obra (o “projeto”
demanda forte introspecção, um diálogo concentrado “entre si consigo mesmo”)
como na fase “prática”, de formalização “material”. — “O ato do poema é um ato
íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas.” — Escreveu João Cabral de
Melo Neto.
(Na verdade, o estádio subjetivo e o objetivo se
interpenetram, justapõem-se no tempo “com atrito”; o projeto, malgrado sua
inércia, modifica-se ao longo de toda a práxis, o que faz do criador um
solitário ininterruptamente atormentado.)
Em segundo lugar, porque o “estar só” do criador implica
riscos psicológicos, talvez mesmo um “custo”, que Thomas Mann identificou e
comentou em sua novela A morte em Veneza.
Transcrevo o trecho abaixo:
“As observações e os acontecimentos do solitário calado são
ao mesmo tempo mais difusos e mais penetrantes que os do sociável (…)
Imaginações e percepções que poderiam facilmente ser postas de lado com um
olhar, um sorriso, uma troca de opiniões, ocupam-no sobremaneira, aprofundam-se
no silêncio, tornam-se importantes, acontecimento, aventura, sentimento. (…) A solidão acarreta o original, o ousado, o
estranhamente belo, o poema. Mas a solidão também acarreta o errado, o
desproporcional, o absurdo e o proibido.” (O itálico é meu.)
Realmente, muitos excêntricos por caráter, de forma
consciente ou não, valem-se da arte ou literatura como tentativa de comunicação
— esforço que, no limite mínimo (porém supremo), consiste em exteriorizar seu
hermetismo subjetivo em objetos herméticos que, na verdade, são “recriações”
radicais da semântica e da linguagem (mecanismo psíquico que Jacques Lacan
designou com o termo “sinthome”, ilustrando-o com algumas obras de James Joyce,
Finnegans wake e outras. — Aliás,
Lacan confessou algures que, para não enlouquecer de vez com tantas discussões
acirradas “entre si consigo mesmo”, criou o seu próprio “sinthome”: o
inconsciente “Real”. Sucesso! Conseguiu reunir uma plêiade de místicos laicos
afeitos aos mais exóticos esoterismos).
Não são poucos, entretanto, os casos de artistas/escritores
antes sociáveis, mentalmente equilibrados que, devido ao hábito de viverem na
“solidão do criador” (e pelas razões apontadas por Thomas Mann, mais potentes
após um divórcio), terminam se transformando em “esquisitos assustadores” —
amiúde ao ponto de, por onde passam, os cães latirem e os bebês chorarem.
(Claro, estou caricaturando).
Obviamente, pelo fato de existirem flutuações estatísticas “contingentes”,
ocorre de também haver um e outro artista/escritor normais (por rigorosa
sacação, calculo em dois por cento). Mesmo esses, porém, são de uma normalidade
tão certinha, exacerbada e redonda que chega a ser teratológica. — Se tomam um
cafezinho às sete da noite, passam a madrugada acordados; para comer uma maçã,
antes a lavam, tiram-lhe a casca e a dividem em fatias absolutamente
simétricas… — Em suma, ninguém escapa.
Outra força centrífuga, talvez a mais poderosa, a qual o
artista encontra-se submetido consiste no fato de ser a arte a parte da Cultura
menos reiterativa e, portanto, a mais dinâmica — pois que se trata “fundamentalmente” (mesmo a mais realista e
figurativa) de criação.
Ora, por sua essência criadora – desligada de qualquer senso
prático-utilitário – a atividade artística exige dos seus agentes uma postura
mais crítica, inconformista, descontente e “corajosa” que a normal, coragem
inclusive para aceitar seu custo, muitas vezes alto: o choque frontal contra
opiniões públicas ao mesmo tempo graníticas e paroquiais, assentadas em valores
miúdos, forças dissuasivas – mediante ameaças de ostracismo – de etiquetas
morais.
Sem dúvida, uma força intensa e constante que acentua os
aspectos negativos da solidão do artista. Se não mata o talento logo no berço
ou o sufoca em claustros, aos poucos o destrói – mormente o dos mais gregários
– por meios vicários, explorando-lhe a vaidade, jogando com seus conflitos —
até, enfim, transformá-lo em mais um trágico ghost writer do impessoal pronome “Se”: “pensa-se como ‘se’ pensa;
julga-se como ‘se’ julga; gosta-se do que ‘se’ gosta; cria-se como ‘se’ cria;
escreve-se como ‘se’ deve escrever…”.
Tantos talentos dissolvidos na impessoalidade da massa evocam,
por contraste, a trajetória singular de um dos maiores escritores do século XX,
Marcel Proust. Morto aos cinquenta e um anos de idade, por três décadas levou
a vida como frívolo homem de salão — um esnobe adotado pelas múmias
aristocráticas do Caubourg Sair.t-Germain.
Requintado na futilidade, sempre ocupado em cumprir à risca todos os ritos de
etiqueta, tratava sua erudição como um precioso “enfeite”. Vale lembrar que,
ainda em sua fase de intensa vida social (bem no centro da cloaca do Grand Monde e em plena Belle Époque – isso é que é glamour!), Proust publicou um livro, Os prazeres e os dias, obra que, malgrado
o valor literário, só foi considerada por seus “pares” – palermas engalanados
em sua maioria – em virtude do prefácio de Anatole France — o que o autor
obteve não por reconhecimento autêntico, mas por vias mundanas e através de
terceiros: a atenção de Anatole a um apelo de Madame de Caillavet.
Havia, porém, em Proust, dois traços que o faziam destoar
daqueles bípedes implumes que compunham seu seleto círculo: uma sincera
generosidade com as pessoas simples, presente em seu cuidado de evitar qualquer
ato capaz de deixar um garçom com a sensação de ter sido humilhado, ou dar
impressão de desprezo a uma camareira ou chofer. Quanto ao segundo traço,
trata-se da qualidade de enfermiço – era asmático desde a puberdade.
Pois, na iminência dos quarenta, a moléstia agravou-se
sobremaneira, tornando-se incapacitante. Foi quando, intuindo a proximidade da
morte, Proust tomou-se de fastio por aquele ambiente de parolagens e parvoíces e
seus viventes meio que fantasmagóricos. Decidiu, então, dedicar o tempo
restante, integralmente, à sua autêntica vocação: a Literatura. Para tanto,
abandonou os salões, isolou-se em sua casa do boulevard Haussmann e, mesmo sofrendo de crises asmáticas intensas e sob
febre quase constante, construiu sua monumental Em busca do tempo perdido — obra em que, seguindo as orientações de
Flaubert, tratou os aristocratas parisienses com a mesma objetividade com que
um paleontólogo estuda a estrutura fossilizada de répteis mesozóicos.
Foi no isolamento voluntário e na doença – infenso a deferências
narcísicas – que Proust encontrou-se, fez-se como homem. E – fato curioso! – ao
contrário de Fausto e Adrian Leverkühn, para realizar suas potencialidades
teve, antes, que passar a perna em seus Mefistófeles empoados.
01/2012
(Comentário enviado por e-mail pelo escritor Carlos Vazconcelos)
ResponderExcluirCaro bulcão,
Aqui do SESC não dá mesmo para deixar comentário nos blogues. O sistema trava. Tentei de novo, mas desiludo-me.
Abaixo o que escrevi. Se você não se incomoda, pode postar em meu nome. Eu não me incomodo.
Abraço.
Muito bom, caro Bulcão. A vida literária pode ser um risco para a literatura, sobretudo quando ela tende para a frivolidade. Pode tornar-se muito atraente, no plano da vaidade, espécie de canto da sereia. Portanto, se há uma obra a ser feita, algo a ser dito irremediavelmente, melhor não se dispersar. Abraço.
Carlos Vasconcelos