Jacques Lacan (1901-1981) |
“O psiquismo humano é equipado de
uma álgebra semântica (expressão cunhada
pelo antropólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss). Alguns indivíduos, porém,
ao longo do seu desenvolvimento neuropsicológico, deparam-se com obstáculos que
impossibilitam, de maneira absoluta, a formação de determinado significante
(conforme Lacan, o nome-do-pai),
fundamental na estrutura da referida álgebra e cuja falta é a porta aberta da psicose. Ocorre que o Eu consciente/pré-consciente, diante desse “furo”, não queda
impotente, ao contrário: mediante o processo criativo – que não é senão
atividade produtora de objetos “significativos” – busca algo que funcione como substituto desse significante
“foracluído” (isto é, “não incluso” – sequer na condição de recalcado ou
reprimido – no aparelho neuropsíquico). — Entendo que o sinthome seria esse substituto.” (Manuel Soares Bulcão Neto)
Sintoma
e sinthoma: duas vertentes na arte de James Joyce
Maria
do Socorro Montezuma Bulcão (*)
RESUMO:
Um recorte do Seminário 23, destacando duas vertentes da escrita de James
Joyce, exemplo tomado por Lacan para
buscar responder, no ano daquele seminário, à questão relativa ao efeito da
arte sobre o sintoma. No caso de Joyce, sua escrita/artifício constituiu-se num
sinthoma na medida em que, fazendo suplência à falta de inscrição do
Nome-do-Pai, lhe garantiu manter juntos os registros do real, simbólico e
imaginário do seu nó, com aparência de enodamento borromeu.
Palavras–chave:
Pai, Nome-do-Pai, sintoma, sinthoma, escrita/escritura, suplência, nó borromeu.
“Velho
pai,velhoartífice,valha-meagora e sempre.”1
Ao
iniciar a primeira aula d’O Seminário 23
– O sinthoma, Lacan menciona que,
segundo afirmação de Philippe Sollers, Joyce teria escrito em inglês, “de tal
maneira que a língua inglesa não existe mais”.2 E prossegue dizendo que, embora
não sendo fácil escrever em inglês, mas devido à pouca consistência dessa
língua, Joyce, pela sucessão de obras que escreveu, acrescentara à língua
inglesa algo que o fazia afirmar que precisava escrever – l’élangues. Note-se aí a aglutinação de palavras:
L’(ELAN)GUES =
LE + ELAN + LANGUES.
Vale
aqui destacar inicialmente algumas definições do termo elã em nosso idioma:
movimento súbito, espontâneo; sentimento ardente, entusiasmo criador, arrojo,
ímpeto, rasgo, inspiração3.
Partindo
de tais conceitos, pode-se pensar que diante dessa aglutinação de palavras
– L’(ELAN)GUES – a afirmação de Lacan é no sentido de que Joyce tinha o ímpeto
de escrever e o fazia por necessidade.
É
ainda Lacan que afirma:
“Suponho que, assim,
ele procura designar alguma coisa como essa elação que, dizem-nos, está no
princípio de não sei qual sinthoma que, em psiquiatria, chamamos mania”.4
Seria
isso dizer que o sinthoma de Joyce era determinado por uma necessidade maníaca?
E o que existia de natureza tão determinante por trás desse elã, a desencadear
uma escrita cujo caráter era o de império, de mister? A relação
sintoma/sinthoma parece indicar algum esclarecimento sobre essas questões.
Lacan
afirma que o sintoma e o sinthoma são “duas vertentes que se ofereciam à arte
de James Joyce”5. Mais adiante vai dizer que (...) o pai é um sintoma, ou um
santo varón (saint-homme)6. O pai, este santo varão que ao desempenhar
eficazmente a função paterna, faz surgir daí o sujeito do desejo. Eis a
vertente sintomática que se oferece à obra de James Joyce: o pai, e no caso
dele, melhor seria dizer a falta da inscrição do Nome do Pai. A falência
paterna apresentava-se para Joyce como determinante da sua necessidade de
escrever. Tal necessidade era decorrente de um império ainda maior: o da
inscrição do Nome do Pai. Sobre o sintoma de Joyce afirma Lacan: “Ulisses
testemunha que Joyce permanece enraizado em seu pai, ainda que o renegando. É
efetivamente isso que é seu sintoma.”7
Sabe-se
que em O retrato do artista quando jovem,
Simon Dedalus, pai de Stephen Dedalus, era um sujeito ordinário e decadente, um
pai falido. O personagem Simon Dedalus é, na verdade, inspirado em John Joyce,
pai de James Joyce.
É
esse pai falido na sua função de inscrição do Nome do Pai, que vai determinar,
em James Joyce, a necessidade de inventar algo capaz de fazer suplência à
citada falta, sendo essa criação a sua escrita. Não se trata, entretanto, de
uma escrita qualquer, mas de uma escrita inventiva que progressivamente vai se
afastando da língua comum rumo à outra direção, via pela qual Joyce transita em
direção ao real, na tentativa sempre frustrada de tocar o impossível. Tal forma
de escrita é, portanto, a via eleita por Joyce “por onde tomar a verdade do
sujeito”8, do seu sujeito. Essa escolha faz Lacan reconhecer em Joyce um
herético, mas herético “de uma boa maneira”9 , na medida em que essa escolha,
segundo Lacan, “uma vez feita não impede ninguém de submetê-la à
confirmação”... A boa maneira ... que por ter reconhecido a natureza do sinthoma,
não se priva de usar isso logicamente, isto é, de usar isso até atingir seu
real, até se fartar.”10
Essa
escrita incomum e inventiva tem, no dizer de Jacques Aubert, “o selo da
Necessidade”... e segundo ele “é uma escritura que ‘se pretende’ deciframento,
que, em outros termos, está à procura ela mesma de uma escritura desaparecida,
uma escritura que visa devolver (a) palavra e (a) vida a uma escritura
fantasmática, mas bem real.11 É nesse sentido que a escrita/escritura de James
Joyce se constitui num sinthoma, a outra vertente da arte de Joyce citada por
Lacan e que tem o condão de fazer suplência a uma falha no nó borromeu,
suplência à falta de inscrição do Nome do Pai e que permite manter unidos os
três registros pelos quais passam toda a experiência de um sujeito: Real, Simbólico e Imaginário.
A
invenção de James Joyce serve de ilustração à pergunta anunciada por Jacques
Lacan no primeiro capítulo do Seminário 23, sua interrogação para aquele ano
sobre a arte: “Em que o artifício pode visar expressamente o que se apresenta
de início como sintoma? Em que a arte, o artesanato, pode desfazer, se assim
posso dizer, o que se impõe do sintoma? A saber, a verdade?”12
Não
há dúvida de que para Joyce a escrita, como sinthoma, foi o artifício que o
retirou da condição de pobre-diabo para, na medida de sua singularidade, elevá-lo
à de herói – em Stephen Hero – e de O artista – no Retrato do artista quando jovem. É nesse sentido que, se referindo a Joyce, Lacan
afirma que “foi a sua arte que supriu a sua firmeza fálica” e que (...) “é
nisso que sua arte é o verdadeiro fiador do seu falo.”13
E
de que modo identificar a singularidade dessa escrita? O que lhe dá esse caráter de originalidade, de invenção, de artifício,
enfim, de sinthoma capaz de suster o nó do sujeito Joyce, impedindo o seu
desatamento?
Existe
na escrita de Joyce um processo que tende à desarticulação da língua (inglesa)
que, como afirma Lacan, não começa em Finnegans
wake, e que já estava presente em Ulisses14.
Na proporção em que esse processo de desarticulação da língua inglesa transita
na contramão da significação, ou seja, indo do sentido em direção ao não
sentido, é que se vislumbra a tentativa de Joyce de tocar o real. Vale lembrar
que, segundo Lacan, Joyce, por sua escrita, atingiu o melhor que uma análise
poderia alcançar em seu término.15
Se
a análise é a resposta a um enigma16,
Joyce perseguiu a resposta quanto ao enigma do seu sujeito através da escrita,
via por onde teceu suturas e emendas17,
tal como se faz em análise. Esse artifício é o que comprova a afirmação de
Lacan de que “A arte pode atingir inclusive o sintoma”.18
É
também nesse sentido que a escrita de Joyce se constituiu como um sinthoma,
isto que Lacan veio a definir como “o que permite ao nó de três não só se
manter nó de três, como se conservar em uma posição tal que ele tenha o aspecto
de constituir nó de três.”19
Lacan
afirmou ainda: “Joyce não sabia que ele fazia o sinthoma, quero dizer, que o
simulava. Isso era inconsciente para ele. Por isso, ele é um puro artífice, um
homem de savoir-faire, o que é igualmente chamado de um artista.”20
Partindo-se
dessas referências acerca do que vem a ser o sinthoma, particularmente no caso
de Joyce, é inevitável suscitar a curiosa, polêmica e sedutora questão
levantada por Lacan acerca da suposta loucura de James Joyce, mas sempre valendo
lembrar que foi o próprio Lacan que ao argüir tal hipótese, teve o cuidado de
afirmar que não o analisou. 21
A
afirmação de que Joyce não fazia sinthoma, e sim o simulava, leva ao entendimento de que o nó de Joyce não era
borromeu, e que tinha apenas aparência dessa espécie de nó, o que justifica a
hipótese sustentada por Lacan quanto à loucura de Joyce.
Louco
ou não louco: eis a questão.
Saber
se James Joyce era ou não louco é uma pergunta que sempre fará questão e não
constitui o cerne deste trabalho. Aqui a intenção foi destacar d’O seminário 23 – “O Sinthoma” –, a via
eleita por um determinado sujeito – James Joyce – que, sendo louco ou não,
lançou mão da escrita de uma forma singular e revolucionária para o seu tempo,
e mesmo para o nosso, reescreveu a sua história e alcançou o seu desejo de se
dar um nome que não lhe fora garantido pelo pai.
Se,
conforme ensinamento de Lacan, “o pai é esse quarto elemento sem o qual nada é
possível no nó do simbólico, do imaginário e do real”22; se o pai, para James Joyce,
não lhe garantiu a inscrição do Nome-do-Pai e, consequentemente, um enodamento
genuinamente borromeu; por outro lado, o sinthoma construído por Joyce manteve
junto os registros do simbólico, imaginário e real do seu nó, fazendo suplência
a essa falha e dando ao seu nó a aparência de nó borromeu.
Finalmente,
não se pode olvidar que Lacan também deu ao pai outro nome: sinthoma, quando
afirmou:
“O pai é esse quarto
elemento sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do imaginário e do real.
Mas há um outro modo de chamá-lo. É nisso o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no
grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto hoje com o que é conveniente
chamar de sinthoma.” 23
Assim,
para James Joyce, onde não foi o Nome-do-Pai, foi o sinthoma:
sinthoma
em Nome-do-Pai.
Notas e Referências Bibliográficas
1
JOYCE, James – Um retrato do artista
quando jovem – p. 266. Tradução: Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva. 1996).
2
LACAN, Jacques – Seminário 23 – O sinthoma
– p. 12. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia.
Edição 2007. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
3
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa,
p. 1106. Ed. 2004. Rio de Janeiro: Editora Objetiva.
4
LACAN, Jacques – Seminário 23 – O sinthoma
– p. 12. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia.
Edição 2007. Rio e Janeiro: Jorge Zahar Editor.
5
Idem. P. 16.
6
LACAN, Jacques – El Sinthoma – Seminário
XXIII, p. 08. www.psicoanalisis.org.br
7
LACAN, Jacques – Seminário 23 – O sinthoma
– p. 68. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução -Sérgio
Laia. Edição 2007. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
8
LACAN, Jacques – Seminário 23 – O sinthoma
– p. 16. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia.
Edição 2007. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
9
Idem.
10
Ibdem.
11
AUBERT, Jacques – Prólogo a Um retrato do
artista quando jovem – Tradução de Analucia Teixeira Ribeiro, in Revista da Letra Freudiana, ano XII,
nº 13, 1993, p. 43.
12
LACAN, Jacques – Seminário 23 – O Sinthoma
– p. 12. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia.
Edição 2007. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
13
Idem, p. 16.
14
“Muito antes, especialmente em Ulisses, ele tem uma forma de picar as frases
que já vai nesse sentido. É verdadeiramente um processo exercido no sentido de
dar à língua em que ele escreve outro uso, em todo caso, um uso bem distante do
comum. Isso faz parte de seu savoir-faire.” LACAN, Jacques – Seminário 23 – O sinthoma – p. 72. Texto
estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia. Edição 2007. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
15
LACAN, Jacques – Outros Escritos.
Lituraterra; p. 15. Ed. 2003. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
16
LACAN, Jacques – Seminário 23 – O Sinthoma
– p. 70. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia.
Edição 2007. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
17
“É de suturas e emendas que se trata na análise” – Idem, p. 78.
18
Idem, p. 41.
19
Idem, p. 91.
20
Idem. P. 114.
21
O que há de terrível , com efeito, é que
fico reduzido a lê-lo, posto que é certo que não o analisei. LACAN, Jacques
– Seminário 23 – O sinthoma – p. 77.
Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia. Edição
2007. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
22
LACAN, Jacques – Seminário 23 – O sinthoma
– p. 163. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia.
Edição 2007. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Anexos — “Joyce, o sintoma”,
Conferência de 16 de junho de 1975, no anfiteatro da Sorbonne, na abertura do V
Simpósio Internacional James Joyce.
23
Idem.
Bibliografia
LACAN,
Jacques – Seminário 23 – O Sinthoma –
Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução – Sérgio Laia. Edição
2007. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2007.
LACAN,
Jacques – El Sinthoma – Seminário XXIII.
www.psicoanalisis.org.br
JOYCE,
James – Um retrato do artista quando
jovem. Tradução: Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva. 1996.
AUBERT,
Jacques – Prólogo a Um retrato do artista
quando jovem – Tradução Ana Lúcia Teixeira Ribeiro, in Revista da Letra
Freudiana, ano XII, nº 13, 1993, p. 43.
LACAN,
Jacques – in Outros Escritos. Lituraterra.
Ed. 2003. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor.
Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. Ed. 2004. Editora Objetiva.
(*) Juíza estadual, membro da
Escola Letra Freudiana.
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