quarta-feira, 5 de outubro de 2011

ÂNGELA CALOU E A CAPTURA DO FUGIDIO (NILTO MACIEL)

Máximo Górki (1868-1936)

 
"Nessa hora em que o corpo enfraquece e a vida emudece, no urro
para dentro do grito calado pela desgraça de uma morte não planejada, escaparei ileso. Mas ele, Górki, da estante de minha menina pacóvia
e coxa às gavetas da Rua 116, será sempre o meio ocular
da reprovação. Eu tenho medo de Górki e nunca,
nunca vou tomá-lo em minhas mãos"
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É de 27 de agosto de 2011 a dedicatória de Ângela Calou, em Eu tenho medo de Górki & outros contos: “Ao caro Nilto Maciel, em suas luzes vermelhazuis de carnavalha, dedico este pequeno diário de sonhos imaginários e nacos de desrazão. Desta, que nem sabe domar o próprio medo”. Para quem não sabe, dois de meus recentes livros são Luz vermelha que se azula e Carnavalha. Tenho um soneto intitulado “Nem sei domar meus próprios cães”. Górki eu li pela primeira vez (ou segunda, pois durante o curso ginasial li uma antologia de contos russos) nos conturbados anos 1967/70: Mãe ou A mãe, leitura obrigatória de todo comunista.

 
O que significam “diário de sonhos imaginários e nacos de desrazão”? Todo escritor escreve um diário (a obra), mesmo aqueles que escrevem de vez em quando ou com lentidão. Todo diário de quem escreve literatura é constituído de sonhos. Todo sonho de escritor é imaginário. E isto é a desrazão. Ou a “captura do fugidio”, de que fala Tércia Montenegro. 


O impresso de Ângela é pequeno, traz nas abas uns elogios de Pedro Salgueiro, um prefácio (“Uma arte que vicia”) de Tércia Montenegro e um posfácio poético (“Para Ângela Calou, o método secreto das fechaduras”) de O Poeta de Meia-Tigela, além das 22 peças ficcionais, num total de 96 páginas. Talvez apenas 70 com texto. Entretanto, que beleza, que riqueza, que pujança! Sim, quantidade não quer dizer qualidade. Quem não sabe disso?


Como todo bom livro de prosa de ficção, este de Ângela Calou nos remete, inicialmente, a duas perguntas: Quem narra? O que narra? Vejamos “Antoine voltou a pé”. Quem é o narrador? “Antoine voltou, sem que nunca eu soubesse como”. Quem é esta mulher, cujos “cabelos começaram a cair”, para quem “a morte era um rato metafísico” e que pouco fala de si mesma, ocupada com a morte de Antoine? Talvez não seja tão importante para o leitor saber quem narra. Certamente os personagens são mais úteis à ‘trama’ do que os narradores. Pois Antoine está na primeira (“Antoine voltou a pé”) e na última (“Eleve-me! – foi o que lhe pedi”) composição do volume. O que isto significa? Que tudo é um círculo? Outros nomes se repetem ou voltam à baila (narração?): Céu (que nome mais inusitado!), Carlile, Amábile, Rudah, Querubim (presentes também em “Marca d’água”). Há ainda Alice, que pode ser aquela mesma de Lewis Carroll. Como não ser, se está até num dos títulos: “Sobreaviso para Alice em seu país”? Que assim se inicia: “Alice, se tu soubesses como o teu mundo é pequeno”. E assim termina: “Tudo de tal modo pequenino que, apenas tu, podes saber, Alice, que atrás do espelho existe apenas o papelão”. Será uma recriação dela? O Poeta de Meia-Tigela fala em ressurreição. Sim, alguns escritores criam, matam e fazem ressurgir seus seres ou suas criaturas: “Que das palavras emane / A morte desse Antoine / E sua ressurreição:” (são os primeiros versos do poema-posfácio). 


Ângela segue à risca a lição de Guimarães Rosa: a estória não quer ser história. Quem dirá que “Da anatomia de um enganado” (narrado por mulher) é conto? Calou não é uma regionalista e não faz questão de ser (ou parecer). No entanto, tal como o Graciliano de Angústia ou São Bernardo, não renega o vocabulário nordestino (ou português antigo), e expressões populares: “calças pegando marreca” (p. 24), “homem muito resolvido” (p. 30). Não tem preconceitos desse tipo. Também não se peja de recriar frases de Guimarães Rosa, o mais nordestino dos escritores do sudeste brasileiro: “Claus desaconteceu de repente”. Ou de aspirar enredos da literatura clássica. E ainda vai e vem num bamboleio de frases supinamente inventadas pela poesia guardada na memória. Além disso, de vez em quando, larga umas frases que nos pegam de surpresa: “como um guarda-chuva que esqueceram de perder”.


A narradora de “A teia e a aranha, mosca distraída fui” faz um passeio pela tradição literária do amor: Sofia e Capitu, “aquela náusea alegre que se quis chamar amor” (a lembrar o lírico Camões), a flauta e os ratos da lenda germânica (artes do encantamento), Der Blaue Wittelsbacher (o diamante azul de Filipe IV), “ofereceu-me uma maçã” (Branca de Neve). O que demonstra (mas a contista não faz questão de comprovar nada, erudição ou conhecimento literário) aguda percepção das entrelinhas das lendas, da história e da literatura. 


Os protagonistas e narradores (masculinos e femininos) de Ângela são todos enigmáticos. A de “Antoine voltou a pé” lamenta não ter “quebrado as duas pernas” de Antoine, no “exercício de minha maldade”. Esse Antoine aparece de novo em “Há coisas que devem morrer”, que assim se inicia: “E assim morreu Antoine”.

A morte está presente em quase toda a obra de Calou. Em “Marca d’água”, a mãe da que narra se suicida: “Eu tinha quatorze anos quando mamãe furtou-nos de sua presença” (...), “naquele dia de luz nenhuma” (Rosa). Nessa narrativa curta (pouco mais de duas páginas) há diversos personagens, todos com nomes explícitos, o que é uma marca de Ângela. 


Em “A teia e a aranha, mosca distraída fui”, Carlile é um vendedor ambulante, um mascate, desses que andavam pelos caminhos, a pé, montados em alimárias ou em carruagens, um cigano, vendedor de sedas, sabedor das artes do encantamento, prontos a seduzir meninas, adolescentes, donzelas, mulheres sonhadoras (“aprendi a desaprender meus modos de menina”), com ofertas de maçãs (Branca de Neve) e outros mimos. “Quando Joana enlouqueceu” (...) Assim se inicia “Joana em dia de seu avesso”, a lembrar aquele poema célebre do mineiro Alphonsus de Guimaraens: “Quando Ismália enlouqueceu, / pôs-se na torre a sonhar...” Até que (é o desfecho) “ateou, distraidamente, fogo ao próprio corpo”. Em “Naquele tempo, naquele lugar”, o que narra se refere a “ciclope adoecido”, “demônios incautos”, “errantes desapressados”, “um homem de roupa preta e pés rachados”, “o retratinho do noivo enforcado”. Nenhum nome de ser fictício é mencionado. Como num sonho interminável. 


O conto do título da coleção é narrado por um homem que não lê Górki, não tem coragem de ler o escritor russo: “Eu tenho medo de Górki”, afirma de chofre, logo no início do escrito. Mas, logo adiante, se justifica: “Eu tenho medo de Górki, e nunca vou lê-lo enquanto estiver sozinho, à mercê do deboche de todos os meus fantasmas reunidos sob o vidro dos meus desafetos”. É um assassino, um arrombador de casas, um louco. Confessa-se: “Sou eu o arrombador”. Sua nova vítima é Dóris, que “tem trinta e cinco anos e é manca da perna esquerda”.


Ângela não pratica o que chamam de “conto fantástico”. Entretanto, em algumas ocasiões, vai além do normal, do real, do razoável, como em “Do oco no meio das falas e coisas”. O narrador confessa: “meu pensamento vazando para fora, e todo mundo vendo”. Ora, quem vê pensamento? As falas (do paciente e de seu interlocutor, médico) se intercalam sem qualquer indicação. Quem mais fala, é claro, é o ‘doente’, que até ironiza o médico: “O senhor, doutor, é um técnico. Que posso eu contra palavra de um técnico?” Na verdade, a contista aboliu completamente certos cacoetes (não só nessa obra), como o diálogo com travessão, verbos dicendi ou aspas. Como se diz, vai direto ao assunto, sem lengalengas, sem quiprocós de quem só sabe contar história (quando sabe).


Não consigo ir além disto (já me sinto em sonho imaginário ou em plena desrazão). Preciso reler os enredos fugidios de Ângela Calou, se quiser me manter real e razoável.

          
Fortaleza, 3 de outubro de 2011.

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