O Homo oeconomicus é um artífício que o dinheiro utiliza para produzir mais dinheiro. |
A MALTHUSIANA LUTA PELA EXISTÊNCIA — Charles Darwin certa vez admitiu que a sua hipótese da seleção natural não lhe surgiu apenas da reflexão acerca dos dados que colhera durante a viagem a bordo do Beagle. Que, para a sua elaboração, foi crucial a leitura que fez de um livro do economista escocês Thomas Malthus: Essay on the principles of populacion (Ensaio sobre os princípios da população). A ideia da obra que o impressionou, conhecida como Lei de Malthus, afirma que as populações humanas tendem a crescer em progressão geométrica, ao passo que os recursos, limitados que são a uma área disponível, crescem num ritmo bem mais lento, de modo que, permanecendo as coisas sem controle, cedo ou tarde instaura-se uma situação de escassez de víveres, de penúria crônica, de fome generalizada, situação esta que tende a se perpetuar.
Ao deparar-se com essa assertiva, Darwin de imediato compreendeu que a discrepância entre o crescimento das populações e a expansão dos recursos também se verifica na natureza – ou seja, nascem mais indivíduos do que o ambiente pode suportar – só que com uma diferença decisiva: na natureza não existe a possibilidade de um controle “a partir de cima”, de sorte que a penúria resultante desse descompasso não é uma situação que por si tende a se perpetuar, mas uma condição perpétua, o estado “natural” da vida.
Nessa condição – concluiu Darwin – estabelece-se um controle exercido cega e impiedosamente a partir de baixo: uma “luta pela existência” em que os mais adaptados ao ambiente conseguem prolongar um pouco mais suas vidas de penúria. E por viverem – miseravelmente – por mais tempo que a média dos miseráveis, deixam no mundo alguns herdeiros a mais (herdeiros dos seus genes e, também, da sua desdita). Esse pequeno diferencial reprodutivo produz efeitos cumulativos, de modo que, a longo prazo, os indivíduos da sua espécie serão “todos” descendentes seus. A esse mecanismo que elimina os inaptos, mantém os medíocres e dissemina os mais aptos (mecanismo este mais intrincado do que se imagina e cuja descrição acima é apenas uma simplificação), Darwin deu o nome de “seleção natural”.
Como se vê, a questão da relação entre Darwin e os economistas é muito interessante. Mas a história não termina aí: quando, pela força do seu poder explicativo, a teoria darwiniana da evolução foi erguida à condição de carro-chefe das ciências, os economistas apologistas do livre-mercado decidiram reaver a grande ideia de Malthus e, como bons capitalistas, retomaram-na acrescida de juros darwinistas.
AS LEIS ESTATÍSTICAS DA SOCIODINÂMICA — Antes disso, os economistas do livre-mercado receberam influências de uma parte da física que, em seus primeiros e largos passos, acompanhou (e contribuiu com) o desenvolvimento das máquinas a vapor, cuja invenção ensejou a Revolução Industrial na Inglaterra. Ora, essas disciplinas – a termodinâmica, a física estatística – lidam com recipientes contendo vapores e gazes, isto é, com sistemas físicos constituídos por milhões de partículas que se comportam de forma independente; uma ideia, portanto, que se adequa perfeitamente à concepção “atomística” do indivíduo professada por muitos desses economistas — o Homo œconomicus como uma mônada, ou melhor, como um átomo isolado (ou então como chefe de uma família nuclear: uma molécula) que se comporta livre (num ziguezague muitas vezes errático) e egoisticamente.
Esses ideólogos do capitalismo também detectaram forte analogia entre o princípio econômico que enuncia “o capital flui para setores da economia em que a lucratividade é maior” e a lei geral da termodinâmica segundo a qual “o calor flui das regiões quentes para as regiões frias”. Ademais, a termodinâmica também afirma que os comportamentos “livres” de todas as partículas microscópicas produzem, como efeito macroscópico, um movimento “previsível” e tendente a uma configuração de equilíbrio. Ora, é patente a semelhança entre este enunciado físico e a ilação de Adam Smith segundo a qual “a resultante do comportamento egoísta de todos os sujeitos econômicos, longe de traduzir-se em caos social, configura uma situação de harmonia geral onde todos recebem o seu justo quinhão”.
Tomando essas analogias como premissas, os economistas então concluíram que, de fato, como dissera Comte, as leis que regem a sociedade humana são leis naturais, físicas, objetivas e que transcendem a vontade dos indivíduos. Acrescentaram, no entanto, que as leis sociais são “isomórficas” não em relação às da Mecânica de Newton, mas às leis estatísticas da Termodinâmica: leis probabilísticas que agem numa massa de fenômenos e cujo grau de precisão de suas previsões é diretamente proporcional à grandeza da massa.
DARWINISMO-SOCIAL DE MERCADO — Depois de deitarem neste leito de Procusto o indivíduo humano (do qual restou apenas a sua faceta de “sujeito econômico”) e a sua sociedade (todas as relações sociais passaram a ser definidas como sendo, em última análise, relações de competição ou de troca), os doutos economistas decidiram nele ajustar a revolucionária teoria da evolução de Darwin-Wallace. Neste ajuste, preservaram do evolucionismo apenas o que lhes convinha para justificar a miséria endêmica, a solidão patogênica, a concorrência sem freios e a amoral – se não imoral – desigualdade. Ou seja, fizeram da seleção natural o deus ex machina do seu esquema cientificista.
Com efeito, além de fazer da pobreza crônica do proletariado em geral e do lumpesinato em particular – do exército industrial de reserva – uma condição “natural” e, assim, livrar o capitalismo de qualquer responsabilidade por ela, a nova doutrina “social-darwinista de mercado” também oferece uma explicação elegante para o fato de poucos terem tanto e muitos possuírem tão pouco. De acordo com essa explicação, no capitalismo não há perda, apenas ganho. Esses que muitos julgam perdedores, na verdade não perderam coisa alguma, nada lhes foi tirado. Como animais que são, estão apenas se mantendo no estado “natural” da vida, que é de fome, sede, frio e competição interindividual feroz. O livre-mercado, no entanto, transforma a concorrência zoológica numa alavanca que permite que alguns concorrentes ergam-se acima dessa condição. Quem são esses concorrentes? “Obvia e tautologicamente”, são os competidores mais aptos, os mais adaptados ao ambiente do mercado, os que se destacam pela eficiência, racionalidade e autocontrole. Como essas três qualidades são boas, e como tudo que é bom é raro, apenas uma minoria logra êxito nessa escalada civilizatória.
De resto, a teoria da seleção natural lhes fornece munição contra os que, em prol do pleno emprego e de uma distribuição menos desigual da riqueza social, pretendem intervir no mercado – substituindo suas leis “naturais”, ou complementando-as, ou tão-somente disciplinando-as – valendo-se, para tanto, de leis jurídicas “manchadas” pela subjetividade e, portanto, largamente arbitrárias.
Pois – raciocinam eles –, se a seleção natural (que, na sociedade humana, manifesta-se através das leis do mercado “livre-concorrencial”) exerce eficazmente, “a partir de baixo”, o controle da população de modo a compatibilizá-la com os recursos disponíveis, então não há a necessidade de um controle vindo de cima. Significa dizer que o Estado, como mecanismo de monitoração das relações sociais, representa um anacronismo.
Ou mesmo algo pior, segundo a opinião de alguns eruditos tarzans da “selva do mercado”. Pois o Estado – afirmam esses senhores – com suas normas jurídicas elaboradas por um parlamento que reflete a opinião da maioria, ou melhor, os interesses da “mediocridade invejosa”, tende a tolher a ação da seleção natural direcional acima descrita que, como vimos, favorece os mais aptos (os mais eficientes, racionais e comedidos).
Do mais – alertam eles –, como se isso não bastasse, o Estado, mediante suas instituições assistencialistas, está fazendo desaparecer das sociedades humanas a seleção natural normalizante ou estabilizadora. Essa modalidade de seleção é a que elimina logo na infância – não permitindo que, atingindo a idade reprodutiva, venham a gerar uma prole – os a priori inaptos, os mutantes teratológicos, os portadores de doenças hereditárias mortificantes ou incapacitantes. Ora, com o relaxamento desse mecanismo natural “profilático”, a consequência inevitável é que alelos deletérios se disseminem na população num ritmo crescente, culminando, enfim, na desorganização total do genoma: numa era de crepúsculo biológico em que cada indivíduo será um doente absorto na administração das suas enfermidades. [1]
O PUNHO VISÍVEL DA MÃO INVISÍVEL — Salvo alguns excêntricos anarcocapitalistas – que propugnam a mercantilização de todos os serviços estatais, inclusive os da segurança e justiça – os apologistas das leis “biofísicas” do laissez-faire[2] não defendem, entretanto, a eliminação total do Estado, mas tão-somente a sua minimização, a sua conversão em Estado meramente “guardião”.
Ocorre que, ao se admitir a necessidade de um Estado “mínimo”, isto é, de um controle exercido “a partir de cima” com o fim de salvaguardar a liberdade dos sujeitos econômicos, o cumprimento dos contratos mercantis etc., então se deve reconhecer, também, que as leis “naturais” do mercado não operam “naturalmente”; que, ao contrário, sua plena operacionalidade depende de fatores “culturais”, ou seja, é ela “determinada”, em última instância, por leis jurídicas ou morais marcadas pela subjetividade. Significa dizer, enfim, que as leis do mercado não são tão naturais como muitos pensam.
Assim como o vapor d’água de uma máquina a vapor, para produzir os efeitos esperados (cientificamente previstos), tem que estar confinado num aparelho “criado pelo homem”, algo semelhante se pode dizer sobre as leis do mercado capitalista: que são naturais – processam-se naturalmente – somente no interior de um laboratório, isto é, dentro dos marcos de um ambiente cultural humano constituído de valores, tabus, imperativos morais, normas jurídicas etc. Fora disso, viram fumaça.
O Estado mínimo, portanto, com suas leis do dever-ser elaboradas por uma plêiade de silvícolas bem nutridos, seria o instrumento par excellence de promoção e manutenção desse ambiente cultural – dessa condição “artificial” – sem o qual não pode haver “fisiocracia”, ou seja, o governo da natureza. Dessa sentença infere-se que, mesmo nas sociedades humanas complexas presididas, em larga medida, por leis estatísticas objetivas (que atuam ao largo da vontade dos indivíduos, como sói ser a lei da oferta e da procura), o sistema de normas morais e jurídicas permanece ocupando uma posição prioritária, pois que é ele ontologicamente anterior.
Aliás, podemos definir o conjunto do mercado como uma massa de contratos mercantis. Ora, o contrato, seja tácito ou explícito, é uma lei do dever-ser aplicada a um caso concreto e que determina: o comprador x “deve” pagar ao vendedor y a quantia equivalente a n reais e na forma f aceita por ambos os contratantes. Nesta condição, o contrato é uma relação que se estabelece entre indivíduos que possuem a “faculdade de prometer” [3] – faculdade esta que, segundo Nietzsche, é o objetivo seletivo da cultura – e que, por isso mesmo, orientam-se por um dever-ser fundamental, a saber: “cumpra o que prometeu independentemente dos benefícios ou prejuízos que sua promessa lhe possa trazer”. É esta, pois, a lei básica sobre a qual se assenta todas as formas de sociedades mercantis. A lei da oferta e da procura ocupa um segundo plano.
Diga-se, ainda, a respeito do Estado mínimo decantado pelos liberistas, que ele tende a ser “máximo” no que diz respeito às suas instituições policiais e militares; pois, muito frequentemente - sustentam alguns agentes desse leviatã portátil - é necessário impor a uma população que não entende nada de ciência – e por meio de uma mão despótica nada invisível, diga-se – as leis “naturais” da economia mercantil-capitalista; como o fez Pinochet no Chile na década de 1970, pelo que recebeu o total endosso do “libertário” Milton Friedman. Aliás, é de Friedman a afirmação de que “a mão invisível do mercado só funciona tendo um punho visível”. O seu apoio ao tirano chileno deixa claro que, em sua opinião, o punho tem que ser forte.
Realmente, o Estado mínimo, além de salvaguardar o horror econômico do dia-a-dia, também é pródigo na promoção do horror político e em demonstrar que não há incompatibilidade nenhuma entre liberalismo econômico e autoritarismo. Contra a China, e pelo livre comércio do ópio, o Estado monárquico imperial – e liberal – inglês travou e venceu duas guerras, a segunda em aliança com o Estado cesarista francês de Napoleão III. Ora, a guerra, segundo o general prussiano Von Clausewitz, não é outra coisa senão “a continuação da política por outros meios”. Esse mesmo Estado mínimo manifestou extremo autoritarismo quando decidiu estabelecer, em suas colônias africanas, uma economia monetária. Nesse processo, o Estado pretensamente tutor da propriedade privada e da liberdade individual promoveu o inverso de tudo isso: desapropriou e enclausurou em currais populações inteiras de nativos, [4] como que preludiando o método stalinista de tratar a questão das nacionalidades e etnias rebeldes.
A POBREZA DO ANIMAL HUMANO — Quanto à ideia, abduzida do darwinismo, de que a pobreza do proletariado é uma condição “natural” – a miséria como o estado natural da vida, inclusive da vida humana – e não uma consequência das relações de exploração capitalistas, para demonstrar que se trata de uma extrapolação infundada, falemos um pouco das condições de existência do homem moderno na sua Idade da Pedra Lascada.
Considerando que a Velha Idade da Pedra (Paleolítico Superior e Mesolítico) [5] estendeu-se da origem da humanidade – aproximadamente 150.000 anos atrás – a 10.000 a .C. (quando então se deu a Revolução Neolítica), compreendendo, pois, 92% do tempo de existência da nossa espécie; levando-se em conta, também, que a frágil Civilização parece ser um fenômeno anômalo, o resultado de um concurso de circunstâncias fortuitas e que, portanto, se aconteceu, era muito mais provável não ter acontecido; então se pode considerar o selvagem como sendo o homem em seu estado “natural” — com sua economia “natural” (a caça e a coleta), sua religião “natural” (o animismo-totemismo) etc.
A imagem que se tem desse homem “natural” é a de um indivíduo nômade paupérrimo, faminto, inculto, violento e com tendências canibalescas. Os registros arqueológicos, porém, se por um lado não endossam a visão romântica do “bom selvagem” vivendo em harmonia com a natureza, por outro lado amenizam e relativizam bastante a visão contrária: a da besta-fera humana sombria e antropofágica.
Os homens das principais culturas do paleolítico superior (chatelperronense, aurignaciana, gravetense, aterense e magdaleana) viveram durante a última Era Glacial, a maioria em estepes e tundras transpassadas por rios repletos de salmões e onde apascentavam grandes manadas de animais comestíveis: bisões, renas, mamutes, cavalos selvagens, o boi almiscarado etc. Segundo o arqueólogo Verer Gordon Childe, esses selvagens, apesar de meros caçadores-coletores (como o são ainda hoje os boxímanes africanos, os aborígines australiano e os esquimós dos confins da Groenlândia), desenvolveram uma cultura rica – a pintura rupestre madalenense, esplendorosa, compara-se à melhor arte contemporânea – e um modus vivendi suave, próspero, não assombrado pelo espectro da fome. Muitos desses povos, inclusive, sequer eram nômades: viviam, do berço ao túmulo, em cavernas assépticas, confortáveis, quando não “em casas de madeira, firmes e mesmo ornamentadas, agrupadas em aldeias permanentes”. [6]
Esses homens, longe de serem trogloditas incultos, possuíam amplo saber astronômico (que lhes permitia prever acontecimentos a longo prazo) e uma medicina complexa, baseada num vasto conhecimento empírico de plantas, minérios e animais.
Desenvolveram, também, métodos de controle da população: técnicas abortivas, a submissão da atividade sexual heterossexual a regras rígidas e a tabus (o que evita a promiscuidade e o seu óbvio efeito), a tolerância e mesmo o incentivo do amor homossexual entre os jovens, além do cruel expediente de sacrificar recém-nascidos mal-formados. Esse controle deliberado da natalidade evitava “antecipadamente” o malthusiano descompasso entre a densidade populacional e os recursos disponíveis e, claro, a situação de miséria que disso resulta inevitavelmente. Trata-se, pois, de uma ação preventiva que torna dispensável a intervenção da seleção natural como mecanismo tardio, “remediador” — eis um fato que os social-darwinistas de mercado não esperavam e que certamente representa, para eles, uma pedra no meio do caminho a frustrar-lhes o raciocínio. [7]
Para este homem “natural”, o trabalho não era uma atividade esgotante, pois, além de estar “sujeito aos ritmos próprios do organismo humano e aos ritmos da natureza (…) o número de dias de trabalho raramente ultrapassava 150 ou 200 por ano”. [8]
Acresce dizer que o homem “natural”, se por um lado vivia modestamente, por outro lado era rico num aspecto fundamental: detinha ele a posse efetiva dos seus instrumentos de trabalho, isto é, era proprietário das ferramentas que lhe permitiam obter da natureza, a qualquer tempo, seus meios de subsistência: o machado de pedra, o arco e a flecha, o lança-dardo, o anzol, a goiva e o buril. Essa riqueza essencial é um dos traços que distinguem o animal humano dessa “coisa” humana que é o proletariado sob o capitalismo irrestrito.
A MISÉRIA DO HOMEM “COISA” — Após termos falado um pouco da pobreza do homem em seu estado natural, o que temos a dizer acerca da pobreza do trabalhador e do lúmpen sob o capitalismo “bucólico”?
Antes de tudo, mister lembrar que, no capitalismo, a força de trabalho e, por conseguinte, o trabalhador (uma vez que não se pode separar do homem as suas faculdades), é uma mercadoria. Menos que isso: é uma mercadoria como qualquer outra. Menos ainda: nesse sistema em que o valor de troca dos produtos importa mais que o seu valor de uso[9], a força de trabalho, logo, o trabalhador e, por extensão, o homem é essencialmente uma mercadoria — e o é principalmente nesta fase pós-industrial em que se generalizou o fenômeno conhecido como “terceirização dos serviços”, isto é, em que a própria força de trabalho é uma mercadoria produzida e vendida por empresas capitalistas.
Sendo assim, a afirmação de que não há perdedores no capitalismo é uma mentira repugnante. Pois, neste “sistema de coisas” – e a expressão deve ser entendida em sua acepção literal – o que o homem perde não se restringe a um predicado acidental, como, por exemplo, a qualidade de proprietário de bens materiais ou de direitos. Na verdade, a privação é mais radical. Em suma, ao ingressar no mercado capitalista da força de trabalho, o homem é destituído da sua substância humana, da sua condição de sujeito, da sua personalidade ou identidade pessoal. Vira um objeto em meio a objetos arrastado por leis objetivas para algum lugar que ele não sabe onde fica. Transforma-se numa coisa que, para constar nos cômputos da gerência científica, é designada não por nome e sobrenome, mas por série numérica entrecortada por hífens ou mesmo por código de barras.
Ao capitalista interessa que, no mercado da força de trabalho, a oferta exceda sempre a demanda. A razão disso é evidente: o excesso de oferta pressiona o preço da mercadoria em questão (o salário do trabalhador) para baixo. Ora, salários baixos implicam custos menores de produção e, portanto, uma taxa maior de lucro. Por este motivo, o pleno emprego não é algo que interessa aos donos do capital. Ao contrário, esforçam-se eles não só para manter esse excesso de oferta como também para ampliá-lo. Como o fazem? Hoje em dia, o investimento incessante em máquinas poupadoras de mão-de-obra, ou seja, a automação progressiva do processo de produção produz ininterruptamente um excedente de força de trabalho, uma vez que implica menos contratações e ondas periódicas de demissões em massa. — Contra essa assertiva, K. Popper argumenta que, “mesmo se gastam [os capitalistas] seu capital em máquinas, só o podem fazer comprando trabalho para construir máquinas, ou fazendo com que outros comprem esse trabalho e aumentando assim a procura de trabalho.”[10] Ocorre que a quantidade de força de trabalho empregada no setor de máquinas ou meios de produção (segundo o jargão marxista, no departamento I da economia) tende a ser menor que a força de trabalho “liberada” pelas novas máquinas produzidas.
De fato, não há como tergiversar: o desemprego estrutural e o subemprego endêmico e, por conseguinte, as misérias material e espiritual [11] que os acompanham são produtos do capitalismo irrestrito, não adestrado pela democracia.
Acresce dizer que não há nada de natural numa miséria que é a consequência de um trabalho estafante voltado para a produção de um excedente de mercadorias (de um sobreproduto social), que toma aproximadamente 300 dias do ano, em que não há integração entre mente e corpo e que se processa não segundo os ritmos do organismo do trabalhador, mas em conformidade com os movimentos mecânicos de uma máquina.
A NEWTONIANA “LUTA PELO LUXO” — Segundo o social-darwinismo de mercado, na luta darwinista-malthusiana pela existência, os ineptos perecem, os medíocres sobrevivem duramente e os mais eficientes “lucram”. [12]
O lucro, segundo a economia neoclássica, é o preço da capacidade empresarial, o prêmio que alguns indivíduos brilhantes recebem por serem mais empreendedores, mais racionais em seus empreendimentos e mais previdentes. A verdade, porém, é que, no mercado capitalista, as coisas não funcionam bem assim.
Para demonstrar o hiato entre a realidade e o esquema, imaginemos dois empresários, A e B. A é um empresário mediano: cuidadoso, eficiente, racional, porém num nível que não ultrapassa a média. Já o empresário B supera os demais em inteligência, sagacidade, visão de conjunto, tino para antever situações futuras etc. Ocorre que o empresário A dirige uma grande empresa cujo montante de capital é, digamos, $1.000.000,00, ao passo que B dispõe para o seu empreendimento de um capital que é um décimo do de A, ou seja, $100.000,00. Pois bem, considerando que A é um empresário mediano, ele obterá ao fim o “lucro médio” – conforme a “taxa média de lucro” – que, na situação hipotética, corresponde a 4% do capital empregado. Ou seja, A terá obtido $40.000,00. Já o empresário B, devido às suas condições subjetivas mais privilegiadas, auferiu um rendimento equivalente a 10% do capital inicial, muito além da taxa de lucro média, isto é, $10.000,00. Esse lucro, no entanto, em termos absolutos, corresponde a um quarto do lucro de A: um empresário capitalista muito menos qualificado.
Como pode isso ter acontecido? — Aconteceu porque o lucro não é a remuneração “justa” de uma atividade específica (a capacidade empresarial), mas um excedente de mercadorias gerado pelo capital investido e, por esta razão, proporcional à magnitude do seu valor. Este fato explica por que o empresário A ganhou mais: “porque tinha mais”.
Se, na natureza, as coisas se atraem, juntam-se e mesmo se fundem em decorrência da interação gravitacional, nesse “sistema de coisas” que é o capitalismo acontece algo semelhante: o dinheiro atrai dinheiro, e o atrai na razão direta da sua massa. Significa dizer que, no capitalismo, o critério de distribuição da riqueza não é o trabalho, a eficiência ou o tino empresarial, mas a propriedade, a própria riqueza. Esse critério, por ser absolutamente amoral – como o é a energia gravitacional – tem por formulação uma sentença não imperativa, mas indicativa: “quem tem mais, ganha mais; quem tem menos, ganha menos; e quem nada tem não só nada ganha como perde-se a si mesmo, transformando-se em propriedade de outrem”.[13]
BULCÃO NETO, Manuel Soares. Sombras do Iluminismo. Rio de Janeiro:
7Letras, 2006, PP. 50-63.
[1] Falo, aqui, em gene e genoma; mas a verdade é que, no tempo de Darwin e das primeiras manifestações do darwinismo-social, nada se sabia acerca desses mecanismos da hereditariedade. Nessa época, para designar o material hereditário, empregavam-se expressões um tanto vagas, como as cunhadas pelo zoólogo alemão August Weismann: “plasma germinativo” e “células germinais”. Quanto ao próprio Darwin, este, em suas obras, valia-se de termos e expressões ainda mais distensas. Por exemplo, afirmava que, na luta pela existência, os mais adaptados ao ambiente propagam o seu “gênero” em maior escala que os demais.
[2] “Laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui-même.” (Deixai-nos fazer, deixai-nos passar, o mundo anda por si mesmo) — esse é o lema proposto pela escola fisiocrata do Século XVIII, “a primeira manifestação científica do pensamento econômico”. Note-se que a palavra “fisiocracia”, composta de termos gregos, significa governo da natureza.
[3] No caso, a promessa de pagar pela mercadoria e a de entregá-la.
[4] Sobre essa política econômica cruel, o economista Ernest Mandel escreveu: “É certo que, nessas terras, com meios de agricultura muito primitivos, a colheita é medíocre, o nível de vida é extremamente baixo, etc. Contudo, não há força material a impelir essa população a ir trabalhar em minas, em fazendas ou em fábricas dum colono branco. Noutros termos: se não se mudasse o regime de propriedade na África Equatorial, na África Negra, não havia possibilidade de ali introduzir o modo de produção capitalista. Para o poder introduzir, teve de se cortar radical e brutalmente, por uma violência extra-econômica, a massa da população negra dos seus meios normais de subsistência. Quer dizer, teve de se transformar uma grande parte das terras, dum dia para o outro, em terras dominais, propriedade do Estado colonizador (…). Teve de se encerrar a população negra em domínios, em reservas (…) numa extensão de terra que era insuficiente para alimentar todos os seus habitantes. E teve ainda de se impor uma capitação, isto é, um imposto em dinheiro por cada habitante, enquanto a agricultura primitiva não trazia rendimentos monetários.”
“Com estas diferentes pressões extra-econômicas criou-se para o Africano uma obrigação de ir trabalhar como assalariado (…) para ganhar em troca desse trabalho o dinheiro para pagar o imposto e comprar o pequeno suplemento de alimentação sem o qual já não era possível a subsistência, dada a insuficiência da terra que ficam à sua disposição”. — MANDEL, Ernest. Iniciação à Teoria Econômica Marxista; Porto: Ed. Afrontamento; 3ª edição; 1975; p. 29.
[5] O paleolítico inferior e o mesopaleolítico dizem respeito a outros hominídeos, isto é, a espécies do gênero Homo diferentes da nossa. Por essa razão, não vamos considerá-los aqui.
[6] CHILDE, V. Gordon.; A Evolução Cultural do Homem. Rio de Janeiro:. Guanabara Koogan; 5ª edição; 1981; p. 70.
[7] A propósito, foi constatada em várias espécies de aves e mamíferos gregários (lebre, lemingue, melharuco-azul etc.) a existência de mecanismos fisiológicos inatos que atuam segundo um princípio de feedback e pelos quais o equilíbrio entre a densidade populacional e o ambiente é estabelecido antecipadamente, de forma preventiva — um fato que, se não elimina a lei de Malthus na natureza, pelo menos restringe um pouco o seu campo de ação. Acrescente-se, ainda, que, de acordo com os estudos de Birch e outros biólogos, é plenamente possível que a seleção natural se realize quando os recursos não são limitados (isto é, sem que haja superpopulação e, consequentemente, luta “direta” – combate – pela sobrevivência), bastando, para tanto, que determinados genes possuam potenciais reprodutivos maiores que os portadores de outros genes (BIRCH, L. C. The Meaning of Competition; Am. Nat., 91: 5-18; 1957).
[8] MANDEL, E. Op. cit., p. 10.
[9] O capitalista não compra para consumir: ele “compra para vender e, assim, obter mais dinheiro”. Por isso, o que lhe interessa no produto não é tanto o uso que se pode fazer dele, mas o seu caráter de mercadoria vendável; ou melhor, o que lhe importa é o valor monetário da coisa, o seu equivalente em dinheiro. Aliás , o dinheiro é uma mercadoria sui generis, uma vez que não possui valor de uso, mas apenas valor de troca.
[10] POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigo. Belo Horizonte:. Ed. Itatiaia e EDUSP; 3ª edição; 1998; Tomo 2; p. 183.
[11] A miséria espiritual consubstancia-se em perda da auto-estima, angústia, depressão, neurose de situação, psicose psicogênica, alcoolismo…
[12] Em sua obra Dialética da Natureza, Friedrich Engels rechaçou brilhantemente as tentativas de se estender à sociedade humana, de forma mecânica (isto é, sem mediações), a darwiniana luta pela existência. O trecho em que o filósofo trata da questão também serve como advertência aos que tentam reduzir o marxismo-engelsianismo a uma variante de esquerda particularmente cruel do social-darwinismo (embora se deva reconhecer que alguns eminentes marxistas, como Kautsky, tentaram repensar o marxismo pelas categorias da moderna teoria da evolução). Eis o trecho:
“Aceitemos, por um momento, o conceito de ‘luta pela vida’, apenas como argumento. O máximo que faz o animal é colher para consumir; ao passo que o homem produz, cria meios de subsistência no mais amplo sentido do termo, os quais, sem ele, a Natureza jamais produziria. Dessa maneira, torna-se impossível qualquer transferência imediata das leis relativas à vida das sociedades animais para as humanas. A produção faz com que a chamada luta pela existência já não gire ao redor dos meios de existência, mas ao derredor dos meios de conforto e desenvolvimento. Neste caso – no que diz respeito aos meios de desenvolvimento socialmente produzidos – são inteiramente inaplicáveis as categorias do reino animal. Finalmente, sob o modo de produção capitalista, a produção alcança um tal volume que a sociedade já não pode consumir os meios de vida, conforto e desenvolvimento produzidos, isso porque o acesso a esses meios é artificial e violentamente interditados à grande massa daqueles que os produziram; por esse motivo, mais ou menos de dez em dez anos uma crise restaura o equilíbrio, destruindo não somente os meios de vida, conforto e desenvolvimento produzidos, mas também uma grande parte da força de produção. Daí a razão pela qual a luta pela existência assume a seguinte forma: proteger os produtos e as forças produtivas da sociedade capitalista burguesa, do efeito destrutivo, aniquilador dessa mesma ordem capitalista (…).”
“A concepção da história como sendo uma série de lutas de classe, tem um conteúdo muito maior e mais profundo do que a sua simples redução ao conceito de luta pela vida.” — ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. Paz e Terra; 4ª edição; 1985; 163/164.
Nenhum comentário:
Postar um comentário