"Vós, os segregados, um dia sereis um povo." (Nietzsche; Zaratustra) |
Sempre que, em discussões acaloradas
sobre questões não só importantes como altamente controversas – os direitos dos
homossexuais ou a existência de deuses, por exemplo – alguém, para
contemporizar, apela para a tolerância, imediatamente ligo o meu
desconfiômetro. Pois, afinal, o que quer dizer “tolerar”? Segundo o Dicionário
Houaiss, “tolerar” significa suportar com indulgência. Vale dizer que o
tolerado é para o tolerante um “inferior” cujos erros devemos relevar, perdoar,
deixar por menos. Neste sentido, o apelo à tolerância não combina muito bem com
um diálogo entre iguais, entre duas opiniões em que a dúvida (e o benefício da
dúvida) recai sobre ambas. Em vez da palavra tolerância, o termo melhor seria deferência
na sua acepção de respeito à alteridade, o que, observe-se, não é incompatível
com certa dose de diabrura retórica, ironia e argumentação agressiva —
agressividade viril, não destrutiva, frise-se (afinal, somos cérebros
apaixonados e não frígidos computadores).
A propósito, conheço uma católica
fervorosa muito “tolerante” que se jacta por ter alguns amigos gays. Esses seus
amigos, ela os aceita – e até os elogia – por não alardearem a sua condição,
fazendo exigências absurdas – como o casamento entre homossexuais –,
participando de paradas de orgulho gay etc. Ou seja, para a tolerante, o bom
gay é aquele que se resigna a uma vida fechada em gueto, não expõe a sua
“monstruosidade” e que está sempre a se esconder, como as baratas nos esgotos.
A palavra ateísmo sempre foi um estigma.
Ser ateu, “até aí tudo bem”, é “tolerável”, mas quando o ateu sai do seu
clubezinho fechado – isso quando pertence a algum, pois a maioria é constituída
de ermitões – e tenta transformar sua concepção de mundo num apostolado (como
de resto é prática de todas as religiões universais), isto é, quando passa de
ateu para a condição de ateísta... horror! Pior ainda quando se vale da ciência
para lançar petardos no calcanhar-de-aquiles das mitologias religiosas – é
quando, então, ele próprio é tachado de intolerante em nada diferente do
stalinista defensor de um Estado policial-militar ateísta.
Impressão negativa
Sou um agnóstico, defensor do Estado
laico, do pluralismo e do direito de todo credo lato sensu – católico
“apostólico”, todas as variantes do pentecostalismo, hare krishna e ateísmo –
de exercerem atividade missionária, com a condição, obviamente, de que o façam
por meio do argumento, da tentativa de persuasão, da palavra – parla –,
respeitando as regras do jogo democrático e sem propugnar a exclusão do outro.
Aliás, “como seria um mundo sem religião?” Seria um mundo sem Dawkins, dado que
este, polemista como é, certamente morreria de tédio.
Ressalte-se que, nessas condições
democráticas de confronto de ideias, o ateísta científico – porém não o ateísta
irracionalista nietzschiano – sai em vantagem; pois, como salientou
brilhantemente o físico teórico Lee Smolin (entrevista à Folha de S. Paulo
em 05 de novembro de 2006), a comunidade científica é um modelo para a
sociedade democrática, uma vez que, na primeira, exige-se que se proceda “de
boa-fé, dentro de regras e com respeito aos que discordam de você”.
O físico brasileiro Marcelo Gleiser, do
qual sou um tiete, em seu artigo “Ateísmo radical” (Folha de S. Paulo,
26 de novembro de 2006) tece críticas até que pertinentes ao ateísmo do biólogo
britânico Richard Dawkins. Porém, quem ler a matéria pode ficar com uma
impressão negativa do escritor – “virulento”, “cientificista” etc. – que não
corresponde em absoluto à realidade. Apesar de rufião – além de suas diatribes
até contra os religiosos mais moderados, brigou feio com o agnóstico Stephen
Gould e da sua cuspideira não escapou sequer o papa do ceticismo científico,
Karl Popper –, Dawkins jamais entronizou a “verdade” científica, identificando-a
com o Bem; não confundia juízos de fato com juízos de valor (principal
característica das ideologias cientificistas responsáveis pelo grosso da
infelicidade humana durante o Século XX) nem compactuou com o determinismo
genético.
Questionamento
permanente
Se ele escreveu o best-seller O gene
egoísta, por outro lado defendeu – e enalteceu – o fato de que “só nós
[seres humanos], na Terra, temos o poder de nos rebelar contra a tirania dos
replicadores egoístas” (O gene egoísta; Lisboa: Gradiva, 1999, p. 283).
Contra o determinismo naturalista que reduz a cultura a um epifenômeno,
sustentou que “a determinação genética não é férrea, mas estatística” (idem), pelo que se pode afirmar que “os
genes não somos nós” (O capelão do Diabo; São Paulo: Companhia das
Letras, 2005, p. 187) e que somos senhores da nossa biologia, não o contrário.
Estabelecendo entre si e o famigerado social darwinismo – tanto o de mercado
como o de Estado – anos-luz de distância, o autor afirma, em O capelão do
Diabo:
“Como cientista
acadêmico, sou um darwinista apaixonado, e acredito que a seleção natural é, se
não a única força por trás da evolução, certamente a única força capaz de
produzir a ilusão de propósito que emociona os que contemplam a natureza. Mas
ao mesmo tempo em que defendo o darwinismo como cientista, sou ardentemente
antidarwinista quando se trata de política ou da condução dos negócios
humanos”. (Tradução de José Colucci Jr.)
Em sua teoria dos memes, isto é, dos
entes ideais que se comportam com relativa autonomia, fazendo do nosso cérebro
seu ecossistema nutritivo e que se valem da linguagem para se autorreplicarem;
nesta sua hipótese acha-se embutida uma crítica às ideias parasitas, vale
dizer, às crenças irracionais que “munidas com a toxina da certeza, tornam-se
parasitas mortificantes ou mesmo letais, e nós [seres humanos], seus organismos
hospedeiros de triste sina” (BULCÃO NETO, Manuel Soares. As esquisitices do
óbvio; Fortaleza: APEX, 2005, p. 79). Contra esses espiroquetas noológicos
– entre os quais figuram muitas divindades carniceiras –, Dawkins receita o
permanente questionamento científico. Amém.
Em suma, o ateísmo radical de Richard
Dawkins é apenas um aspecto secundário de um humanismo intransigente.
Improvável como a xícara
Richard Dawkins é um grande cientista,
um excelente escritor e um filósofo… mediano. O Exemplo citado por Marcelo
Gleiser ilustra bem a sua deficiência na área do pensamento mais abstrato.
Marcelo Cavallari, por sua vez, em seu brilhante artigo “O provincianismo
neoateu” (revista Época, nº 443, 13 de novembro de 2006, p. 97),
desqualificando-o ainda mais como filósofo, lembra que ele cita uma “piada” de
Bertrand Russell – como se fosse argumento sério – segundo a qual a existência
de Deus é tão impossível de provar pela ciência quanto a hipótese de que há uma
xícara em órbita do Sol, entre a Terra e Marte. Segundo M. Cavallari, o que
Dawkins não percebe – e o que faz da asserção de B. Russell uma anedota – é que
a questão da existência de Deus – isto é, de uma Causa Final, de uma
razão-de-ser do Universo e de um propósito ético movendo o mundo –, algo que o
método científico-experimental realmente não pode corroborar nem refutar
jamais, é uma questão importante, atormentadora, que preocupa todos os homens,
alguns mais que outros, ao passo que a possibilidade de que exista uma xícara
em órbita no Sistema Solar não passa de uma curiosidade, um assunto para
diletantes numa mesa de bar depois da quinta dose de uísque.
Se Dawkins, realmente, não tem lá argumentos
muito consistentes contra aquelas concepções mais elaboradas de Deus – o Deus “razão
de ser” de Leibniz, o id quo maius cogitare nequit de Boécio e Anselmo,
diga-se, no entanto, em defesa de Dawkins, que a existência de deuses
zoomórficos, quiméricos, antropomórficos e seus séquitos de espíritos e
demônios (súcubos, íncubos…), se de fato é uma possibilidade, trata-se, no
entanto, de uma possibilidade tão ridiculamente improvável como a xícara de
Russell.
Pior sem eles
Ademais, é precisamente essa espécie de
deuses passionais a que exige sacrifícios de sangue e que inspira muito mais
terror do que amor ou encantamento. A crença nessas divindades é uma geratriz
de angústia, torna a realidade muito mais cruel do que realmente é – e, por
imobilizar as pessoas através do medo, há séculos tem servido como instrumento
de dominação. Pois bem, ao reduzir esse panteão a uma congérie de tigres
de papel, Dawkins e outros neoateus nos estão prestando um favor imenso.
Na terra arrasada que sucedeu ao
falhanço das velhas cosmovisões cientificistas, isto é, das ideologias que
reivindicavam para si o estatuto de “expressão política do conhecimento
científico” – o darwinismo social “nazi”, o socialismo “científico” e o liberalismo
econômico “fisiocrático” – medra a reação anti-iluminista, o fundamentalismo
religioso de todas as extrações (cristão, islâmico, judaico...).
Paulatinamente, no entanto, na literatura e no mass media começam a
surgir outras vozes, enunciadoras de um laicismo total e de um ateísmo radical
— radical porque, infelizmente, o tempo é de violência: Salman Rushdie, José
Saramago, Michel Houellebecq, Michel Onfray, Richard Dawkins, Christopher
Hitchens, Daniel Dennett, entre outros.
Quanto a mim, um agnóstico, só espero
que os neoateístas tenham aprendido com a história. De qualquer modo, ruim com
eles, pior sem eles, é o que penso. — Bem-vindos à arena do Século XXI!
Manuel Soares Bulcão Neto
* Artigo
publicado no site do Observatório da
Imprensa, em 05 de dezembro de 2006, com quinze comentários.
Despotismo da
maioria
Estudos
comprovam que muitos pedófilos foram, eles próprios, vítimas de abuso sexual na
infância; que filhos de pais cruéis tendem, quando adultos, a se tornar tiranos
domésticos; que jovens constantemente brutalizados por outros – em geral um
grupo – não raro respondem de forma irracional, aviltando-se a si mesmos (perda
de autoestima, depressão, suicídio…) ou violentando os ainda mais fracos. E
assim, por contágio – de modo sub-reptício, pelo viés do inconsciente – o mal
se propaga.
Sim,
alguns reagem à agressividade sádica com agressividade viril (atitude tão bem
retratada no filme sueco Evil, raízes do
mal). Não poucos desenvolvem empatia por indivíduos e minorias hostilizados
e, por conseguinte, aversão à violência que tem por alvo qualquer um que venha
a fugir dos padrões, os que não se enquadram na homogeneidade normal, aqueles
que não sacrificam sua autonomia pelos pequenos e obsoletos valores das tribos.
Estes, que trazem no sangue benignos anticorpos, também são minoritários, nadam
contra a maré e lutam contra os que tentam segregá-los. Seu número, no entanto,
cresce dia a dia, de modo cada vez mais perceptível.
Infelizmente,
às vezes, como naquele dia de cão em que se deu o massacre de Realengo (7 de
abril de 2011, Escola Municipal Tasso da Silveira, Rio de Janeiro), o mal se
mostra radicalmente, matando crianças sem antes congelar-lhes – requinte! – o
coração com a adrenalina do pavor. Surgem, nesses momentos, fendas na rotina pelas
quais vislumbramos o absurdo, o não-sentido. Psicólogos, neuropsiquiatras,
sociólogos, literatos e religiosos são convocados pela mídia para explicar os
motivos do assassinato em massa, fazer-nos entender atos tão extremos. Sociopata,
psicótico, necrófilo exibicionista, apenas um débil mental macaqueando jihadistas…
Afinal, de quem se trata? Alguém, paralisado de espanto, lembra uma sentença de
Loren Eiseley: “Não confiaremos em ninguém. O homem é a maldade. O homem é um
animal. Veio das trevas dos bosques e das cavernas.” — Mas que animal selvagem age
assim? Não seria um animal doente?
O
assassino Wellington Menezes de Oliveira (24 anos de idade) era produto e
escória de muitos fatores entrelaçados (genes, ambientes…), inclusive de si próprio,
isto é, da sua liberdade de escolha que, mesmo exígua, conferia-lhe
responsabilidade moral por seus atos (presumindo-se que não sofria de doença
mental grave, caso em que seria juridicamente incapaz).
Do
vídeo que ele deixou, pinço, no entanto, o trecho em que, evocando certa
irmandade imaginária, Wellington fala que “nossa” luta não se deve
exclusivamente ao bullying. Ora, isso
é o mesmo que dizer que sua primeira experiência com o rolo compressor da opinião
pública – a violência física e psicológica que sofrera na escola,
reiteradamente, por algum traço destoante dos gostos e preconceitos da maioria
dos colegas – foi o dínamo “quase exclusivo” da sua ação.
Na
fase da infância que, segundo Freud, equivale ao período de latência, a escola
passa para o primeiro plano na socialização do indivíduo. A criança, muito gregária,
identifica-se mais com o grupo como um todo do que com seus membros
considerados um a um. Por esta razão, e também pelo fato de o seu sistema
nervoso central ainda estar amadurecendo, o bullying
pode gerar efeitos desastrosos e irreversíveis, principalmente se a vítima
tiver predisposição genética para enfermidades neuropsíquicas.
Wellington
matou indiscriminadamente porque seu ódio não era pelas pessoas isoladas, mas
pelo grupo. Curiosamente, disse que agiria em nome da “irmandade” à qual, em
seu delírio, pertencia.
Há
os que se tornam melhores após grande sofrimento emocional; outros, porém,
subsistem como escombros e desejam transformar o mundo em algo semelhante a
eles. Stendhal, em seu romance O vermelho
e o negro, escreveu que “são dos momentos de grande humilhação que surgem
os Robespierre.” Eduquemos, pois, nossas crianças contra o espírito de malta e
sua insídia: a vendeta dos arruinados pode voltar-se contra qualquer um — ou todos
nós.
Manuel
Soares Bulcão Neto,
ensaísta.
Crônica
publicada no jornal Diário do Nordeste em
24/04/2011.
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