segunda-feira, 26 de março de 2012

DUAS CRÔNICAS (MANUEL SOARES BULCÃO NETO)

"Vós, os segregados, um dia sereis um povo."
(Nietzsche; Zaratustra)
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Tolerância não, respeito sim*

Sempre que, em discussões acaloradas sobre questões não só importantes como altamente controversas – os direitos dos homossexuais ou a existência de deuses, por exemplo – alguém, para contemporizar, apela para a tolerância, imediatamente ligo o meu desconfiômetro. Pois, afinal, o que quer dizer “tolerar”? Segundo o Dicionário Houaiss, “tolerar” significa suportar com indulgência. Vale dizer que o tolerado é para o tolerante um “inferior” cujos erros devemos relevar, perdoar, deixar por menos. Neste sentido, o apelo à tolerância não combina muito bem com um diálogo entre iguais, entre duas opiniões em que a dúvida (e o benefício da dúvida) recai sobre ambas. Em vez da palavra tolerância, o termo melhor seria deferência na sua acepção de respeito à alteridade, o que, observe-se, não é incompatível com certa dose de diabrura retórica, ironia e argumentação agressiva — agressividade viril, não destrutiva, frise-se (afinal, somos cérebros apaixonados e não frígidos computadores).
A propósito, conheço uma católica fervorosa muito “tolerante” que se jacta por ter alguns amigos gays. Esses seus amigos, ela os aceita – e até os elogia – por não alardearem a sua condição, fazendo exigências absurdas – como o casamento entre homossexuais –, participando de paradas de orgulho gay etc. Ou seja, para a tolerante, o bom gay é aquele que se resigna a uma vida fechada em gueto, não expõe a sua “monstruosidade” e que está sempre a se esconder, como as baratas nos esgotos.
A palavra ateísmo sempre foi um estigma. Ser ateu, “até aí tudo bem”, é “tolerável”, mas quando o ateu sai do seu clubezinho fechado – isso quando pertence a algum, pois a maioria é constituída de ermitões – e tenta transformar sua concepção de mundo num apostolado (como de resto é prática de todas as religiões universais), isto é, quando passa de ateu para a condição de ateísta... horror! Pior ainda quando se vale da ciência para lançar petardos no calcanhar-de-aquiles das mitologias religiosas – é quando, então, ele próprio é tachado de intolerante em nada diferente do stalinista defensor de um Estado policial-militar ateísta.

Impressão negativa

Sou um agnóstico, defensor do Estado laico, do pluralismo e do direito de todo credo lato sensu – católico “apostólico”, todas as variantes do pentecostalismo, hare krishna e ateísmo – de exercerem atividade missionária, com a condição, obviamente, de que o façam por meio do argumento, da tentativa de persuasão, da palavra – parla –, respeitando as regras do jogo democrático e sem propugnar a exclusão do outro. Aliás, “como seria um mundo sem religião?” Seria um mundo sem Dawkins, dado que este, polemista como é, certamente morreria de tédio.
Ressalte-se que, nessas condições democráticas de confronto de ideias, o ateísta científico – porém não o ateísta irracionalista nietzschiano – sai em vantagem; pois, como salientou brilhantemente o físico teórico Lee Smolin (entrevista à Folha de S. Paulo em 05 de novembro de 2006), a comunidade científica é um modelo para a sociedade democrática, uma vez que, na primeira, exige-se que se proceda “de boa-fé, dentro de regras e com respeito aos que discordam de você”.
O físico brasileiro Marcelo Gleiser, do qual sou um tiete, em seu artigo “Ateísmo radical” (Folha de S. Paulo, 26 de novembro de 2006) tece críticas até que pertinentes ao ateísmo do biólogo britânico Richard Dawkins. Porém, quem ler a matéria pode ficar com uma impressão negativa do escritor – “virulento”, “cientificista” etc. – que não corresponde em absoluto à realidade. Apesar de rufião – além de suas diatribes até contra os religiosos mais moderados, brigou feio com o agnóstico Stephen Gould e da sua cuspideira não escapou sequer o papa do ceticismo científico, Karl Popper –, Dawkins jamais entronizou a “verdade” científica, identificando-a com o Bem; não confundia juízos de fato com juízos de valor (principal característica das ideologias cientificistas responsáveis pelo grosso da infelicidade humana durante o Século XX) nem compactuou com o determinismo genético.

Questionamento permanente

Se ele escreveu o best-seller O gene egoísta, por outro lado defendeu – e enalteceu – o fato de que “só nós [seres humanos], na Terra, temos o poder de nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas” (O gene egoísta; Lisboa: Gradiva, 1999, p. 283). Contra o determinismo naturalista que reduz a cultura a um epifenômeno, sustentou que “a determinação genética não é férrea, mas estatística” (idem), pelo que se pode afirmar que “os genes não somos nós” (O capelão do Diabo; São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 187) e que somos senhores da nossa biologia, não o contrário. Estabelecendo entre si e o famigerado social darwinismo – tanto o de mercado como o de Estado – anos-luz de distância, o autor afirma, em O capelão do Diabo:

“Como cientista acadêmico, sou um darwinista apaixonado, e acredito que a seleção natural é, se não a única força por trás da evolução, certamente a única força capaz de produzir a ilusão de propósito que emociona os que contemplam a natureza. Mas ao mesmo tempo em que defendo o darwinismo como cientista, sou ardentemente antidarwinista quando se trata de política ou da condução dos negócios humanos”. (Tradução de José Colucci Jr.)

Em sua teoria dos memes, isto é, dos entes ideais que se comportam com relativa autonomia, fazendo do nosso cérebro seu ecossistema nutritivo e que se valem da linguagem para se autorreplicarem; nesta sua hipótese acha-se embutida uma crítica às ideias parasitas, vale dizer, às crenças irracionais que “munidas com a toxina da certeza, tornam-se parasitas mortificantes ou mesmo letais, e nós [seres humanos], seus organismos hospedeiros de triste sina” (BULCÃO NETO, Manuel Soares. As esquisitices do óbvio; Fortaleza: APEX, 2005, p. 79). Contra esses espiroquetas noológicos – entre os quais figuram muitas divindades carniceiras –, Dawkins receita o permanente questionamento científico. Amém.
Em suma, o ateísmo radical de Richard Dawkins é apenas um aspecto secundário de um humanismo intransigente.

Improvável como a xícara

Richard Dawkins é um grande cientista, um excelente escritor e um filósofo… mediano. O Exemplo citado por Marcelo Gleiser ilustra bem a sua deficiência na área do pensamento mais abstrato. Marcelo Cavallari, por sua vez, em seu brilhante artigo “O provincianismo neoateu” (revista Época, nº 443, 13 de novembro de 2006, p. 97), desqualificando-o ainda mais como filósofo, lembra que ele cita uma “piada” de Bertrand Russell – como se fosse argumento sério – segundo a qual a existência de Deus é tão impossível de provar pela ciência quanto a hipótese de que há uma xícara em órbita do Sol, entre a Terra e Marte. Segundo M. Cavallari, o que Dawkins não percebe – e o que faz da asserção de B. Russell uma anedota – é que a questão da existência de Deus – isto é, de uma Causa Final, de uma razão-de-ser do Universo e de um propósito ético movendo o mundo –, algo que o método científico-experimental realmente não pode corroborar nem refutar jamais, é uma questão importante, atormentadora, que preocupa todos os homens, alguns mais que outros, ao passo que a possibilidade de que exista uma xícara em órbita no Sistema Solar não passa de uma curiosidade, um assunto para diletantes numa mesa de bar depois da quinta dose de uísque.
Se Dawkins, realmente, não tem lá argumentos muito consistentes contra aquelas concepções mais elaboradas de Deus – o Deus “razão de ser” de Leibniz, o id quo maius cogitare nequit de Boécio e Anselmo, diga-se, no entanto, em defesa de Dawkins, que a existência de deuses zoomórficos, quiméricos, antropomórficos e seus séquitos de espíritos e demônios (súcubos, íncubos…), se de fato é uma possibilidade, trata-se, no entanto, de uma possibilidade tão ridiculamente improvável como a xícara de Russell.

Pior sem eles

Ademais, é precisamente essa espécie de deuses passionais a que exige sacrifícios de sangue e que inspira muito mais terror do que amor ou encantamento. A crença nessas divindades é uma geratriz de angústia, torna a realidade muito mais cruel do que realmente é – e, por imobilizar as pessoas através do medo, há séculos tem servido como instrumento de dominação. Pois bem, ao reduzir esse panteão a uma congérie de tigres de papel, Dawkins e outros neoateus nos estão prestando um favor imenso.
Na terra arrasada que sucedeu ao falhanço das velhas cosmovisões cientificistas, isto é, das ideologias que reivindicavam para si o estatuto de “expressão política do conhecimento científico” – o darwinismo social “nazi”, o socialismo “científico” e o liberalismo econômico “fisiocrático” – medra a reação anti-iluminista, o fundamentalismo religioso de todas as extrações (cristão, islâmico, judaico...). Paulatinamente, no entanto, na literatura e no mass media começam a surgir outras vozes, enunciadoras de um laicismo total e de um ateísmo radical — radical porque, infelizmente, o tempo é de violência: Salman Rushdie, José Saramago, Michel Houellebecq, Michel Onfray, Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Daniel Dennett, entre outros.
Quanto a mim, um agnóstico, só espero que os neoateístas tenham aprendido com a história. De qualquer modo, ruim com eles, pior sem eles, é o que penso. — Bem-vindos à arena do Século XXI!

Manuel Soares Bulcão Neto


* Artigo publicado no site do Observatório da Imprensa, em 05 de dezembro de 2006, com quinze comentários.


Despotismo da maioria


Estudos comprovam que muitos pedófilos foram, eles próprios, vítimas de abuso sexual na infância; que filhos de pais cruéis tendem, quando adultos, a se tornar tiranos domésticos; que jovens constantemente brutalizados por outros – em geral um grupo – não raro respondem de forma irracional, aviltando-se a si mesmos (perda de autoestima, depressão, suicídio…) ou violentando os ainda mais fracos. E assim, por contágio – de modo sub-reptício, pelo viés do inconsciente – o mal se propaga.
Sim, alguns reagem à agressividade sádica com agressividade viril (atitude tão bem retratada no filme sueco Evil, raízes do mal). Não poucos desenvolvem empatia por indivíduos e minorias hostilizados e, por conseguinte, aversão à violência que tem por alvo qualquer um que venha a fugir dos padrões, os que não se enquadram na homogeneidade normal, aqueles que não sacrificam sua autonomia pelos pequenos e obsoletos valores das tribos. Estes, que trazem no sangue benignos anticorpos, também são minoritários, nadam contra a maré e lutam contra os que tentam segregá-los. Seu número, no entanto, cresce dia a dia, de modo cada vez mais perceptível.
Infelizmente, às vezes, como naquele dia de cão em que se deu o massacre de Realengo (7 de abril de 2011, Escola Municipal Tasso da Silveira, Rio de Janeiro), o mal se mostra radicalmente, matando crianças sem antes congelar-lhes – requinte! – o coração com a adrenalina do pavor. Surgem, nesses momentos, fendas na rotina pelas quais vislumbramos o absurdo, o não-sentido. Psicólogos, neuropsiquiatras, sociólogos, literatos e religiosos são convocados pela mídia para explicar os motivos do assassinato em massa, fazer-nos entender atos tão extremos. Sociopata, psicótico, necrófilo exibicionista, apenas um débil mental macaqueando jihadistas… Afinal, de quem se trata? Alguém, paralisado de espanto, lembra uma sentença de Loren Eiseley: “Não confiaremos em ninguém. O homem é a maldade. O homem é um animal. Veio das trevas dos bosques e das cavernas.” — Mas que animal selvagem age assim? Não seria um animal doente?
O assassino Wellington Menezes de Oliveira (24 anos de idade) era produto e escória de muitos fatores entrelaçados (genes, ambientes…), inclusive de si próprio, isto é, da sua liberdade de escolha que, mesmo exígua, conferia-lhe responsabilidade moral por seus atos (presumindo-se que não sofria de doença mental grave, caso em que seria juridicamente incapaz).
Do vídeo que ele deixou, pinço, no entanto, o trecho em que, evocando certa irmandade imaginária, Wellington fala que “nossa” luta não se deve exclusivamente ao bullying. Ora, isso é o mesmo que dizer que sua primeira experiência com o rolo compressor da opinião pública – a violência física e psicológica que sofrera na escola, reiteradamente, por algum traço destoante dos gostos e preconceitos da maioria dos colegas – foi o dínamo “quase exclusivo” da sua ação.
Na fase da infância que, segundo Freud, equivale ao período de latência, a escola passa para o primeiro plano na socialização do indivíduo. A criança, muito gregária, identifica-se mais com o grupo como um todo do que com seus membros considerados um a um. Por esta razão, e também pelo fato de o seu sistema nervoso central ainda estar amadurecendo, o bullying pode gerar efeitos desastrosos e irreversíveis, principalmente se a vítima tiver predisposição genética para enfermidades neuropsíquicas.
Wellington matou indiscriminadamente porque seu ódio não era pelas pessoas isoladas, mas pelo grupo. Curiosamente, disse que agiria em nome da “irmandade” à qual, em seu delírio, pertencia.
Há os que se tornam melhores após grande sofrimento emocional; outros, porém, subsistem como escombros e desejam transformar o mundo em algo semelhante a eles. Stendhal, em seu romance O vermelho e o negro, escreveu que “são dos momentos de grande humilhação que surgem os Robespierre.” Eduquemos, pois, nossas crianças contra o espírito de malta e sua insídia: a vendeta dos arruinados pode voltar-se contra qualquer um — ou todos nós.

Manuel Soares Bulcão Neto, ensaísta.

Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste em 24/04/2011.

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