sexta-feira, 15 de julho de 2011

A ESCRITURA DE DOSTOIÉVSKI: ÉTICA E METAFÍSICA POLIFÔNICAS (ENSAIO DE ALVES DE AQUINO)

Dostoiévski em Xilogravura de 1927 de Lasar Segall


“Na mecânica estatística, é conhecida a figura hipotética do demônio de Maxwell: ser inteligente microscópico que age, deliberadamente, no sentido de subverter a probabilística 2ª lei da termodinâmica. Pode-se, por analogia, considerar a hipótese de um homem demoníaco que viola a lei moral fundamental por ato puro da vontade: Optima video, deteriora sequor (vendo o bem, escolhe o pior). Essa transgressão como afirmação da liberdade do espírito é um viés que, segundo Kant, representa a malignidade da natureza humana (vitiositas). — Considero Stavróguin, insondável personagem d’Os Possessos de Dostoiévski, um fantasma muito próximo desse demônio.” (M. Bulcão, A eloquência do ódio)
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“Todos os heróis de Dostoiévski se interrogam sobre o sentido da vida. É nisso que eles são modernos: não temem o ridículo. O que distingue a sensibilidade moderna da sensibilidade clássica é que esta se nutre de problemas morais e aquela de problemas metafísicos. Nos romances de Dostoiévski a questão é apresentada com uma tal intensidade que só pode levar a soluções extremas. A existência é mentirosa ou ela é eterna. Se Dostoiévski se satisfizesse com esse exame, seria filósofo. Mas ele ilustra as consequências que esses jogos do espírito podem ter numa vida humana e é nisso que ele é artista.” (O Mito de Sísifo, Albert Camus)

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1. Introdução

“(...) Mas será melhor que lhe conte o encontro que tive, o ano passado, com outro indivíduo. (...) O referido indivíduo tinha sido conduzido, juntamente com outros, ao cadafalso e lhe haviam lido a sentença condenando-o à morte: fuzilamento, por delito político. Vinte minutos depois leram-lhe também o decreto de indulto, condenando-o a outra espécie de castigo. Mas no intervalo entre as duas leituras, vinte minutos, ou quando menos, um quarto de hora, teve o nosso homem a convicção absoluta de que haveria de morrer dentro de poucos momentos. (...) Depois de ter-se despedido de seus camaradas, achou-se dono daqueles dois minutos que havia destinado a pensar em suas coisas; sabia de antemão em que havia de pensar; toda a sua ânsia era imaginar, com a maior rapidez e clareza possíveis, como haveria de ser aquilo: que ele, naquele instante existisse e vivesse e, ao fim de três minutos, tivesse de ser já outra coisa, alguém ou algo diferente... O quê? E onde? Tudo isso pensava ele resolvê-lo naqueles dois minutos. (...) A ignorância e o horror daquela coisa nova com que dali a um momento iria defrontar-se eram espantosos; mas assegurava o homem que em todo aquele momento não tinha havido nada de mais terrível para ele que este contínuo pensamento: ‘E se não tivesse de morrer? E se voltasse à vida? Que eternidade! E tudo isso seria meu! Então converteria eu cada minuto num século, não perderia nada, pediria contas a cada minuto, não gastaria nem um só em vão.’ Dizia que este pensamento chegou a inspirar-lhe tal raiva, finalmente, que a única coisa que queria era que o fuzilassem quanto antes”. [1]

... Eis a forma pela qual, através da personagem Míchkin de O Idiota, pormenorizadamente nos relata Dostoiévski o episódio de sua própria execução, quase ocorrida em 22 de dezembro de 1849, quando contando apenas 27 anos de idade. O motivo da condenação? Um certo envolvimento político... Escapara o escritor à morte, mas não ao cárcere de indeléveis memórias: se estas resultaram no escrito intitulado Recordações da casa dos mortos (1860), aquela experiência política de juventude haveria de ser explicitada apenas mais tarde, numa muito mais complexa trama, singularmente denominada — Os Demônios...

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A simples menção de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski talvez justificasse por si só um estudo como este. Juntamente com Leon Tolstoi ocupa o autor indubitavelmente o lugar de mais importante escritor da História da Literatura Russa. E se falamos de Literatura Universal, ainda será entre os primeiros que estará posicionado. Mesmo Freud, a despeito das inúmeras ressalvas que antepõe ao “neurótico, ao moralista, ao pecador” em Dostoiévski, não deixa de legar ao “artista criador” um lugar de destaque, “onde dificilmente qualquer valorização será suficiente”.[2]
Ora, justamente dão azo (e asas) às presentes páginas os aspectos neurótico, moralista e pecador, de uma igual maneira encontráveis no artista criador. Procuraremos desenvolver propriamente a intrínseca relação em Dostoiévski, entre sua postura perante um problema específico (o ateísmo) e as consequências de tal posicionamento no que diz respeito à sua obra, em particular ao romance Os Demônios. Realmente, neste escrito de fôlego e fogo estão acumuladas todas as considerações características de nosso autor: a introspecção das personagens, a exaltação do instinto e do inconsciente, o combate interior travado pelo bom e pelo maléfico agir, a fé perdida ou procurada (e quase nunca encontrada). Os dois tópicos finais constituirão o que chamaremos relação ético-metafísica: veremos como os heróis dostoievskianos inserem-se no interior de uma problemática que procura articular direta e necessariamente a moral transcendente de um “além-mundo” (para utilizarmos uma expressão nietzschiana) à moral terrena; perceberemos o quanto para Dostoiévski é cara a aproximação ou dicotomia das duas esferas. E de tal maneira que, seja pela temática que aborda, seja pela forma como aborda a temática, a criação romanesca do escritor russo torna-se uma discussão dilacerada acerca dos valores humanos, e principalmente acerca da ausência desses mesmos valores.[3] O que faz com que sua escritura profunda conturbe-se por vezes com reflexões típicas de um tratado filosófico: mas Dostoiévski é (!) um escritor imerso em conjecturas filosóficas; somente, sua criação ultrapassa os limites de uma logística fria e intemporal, mostrando-se a ideia não como algo a ser realizado “objetivamente”, a despeito do indivíduo, mas como algo com que o próprio indivíduo se unifica. A ideia em Dostoiévski é sobretudo carne, e todo pensamento, pensamento-sentimento, pensentimento.
Não trairemos o autor, portanto, ao afirmarmos serem seus romances uma autobiografia disfarçada, esfacelada, multifacetada em diversas e antagônicas personagens, em situações extremas e dilacerantes, mas sempre uma autobiografia. Contudo, importa acrescentarmos que os fatos biográficos dizem respeito não necessariamente a um acontecimento concreto de sua existência histórica individual, porém relatam as peripécias da alma, as circunvagações afetomentais, retratam a interioridade tornada exterior. Uma aventura do espírito...[4]

2. O Duplo, O Múltiplo: Um Problema Preliminar

“Aquele mundo estranho e doente, em que os Evangelhos nos introduzem — um mundo como que saído de uma novela russa, onde o lixo da sociedade, a enfermidade nervosa e a idiotia “infantil” parecem ter marcado encontro — deve em todas as circunstâncias ter tornado mais tosco o tipo. Os primeiros discípulos, em particular, traduziram primeiro para a sua crueza própria um ser flutuando em símbolos e enigmas [o Cristo] e incompreensibilidades para dele compreenderem em geral alguma coisa — para eles, só existiu após uma moldagem a formas conhecidas... (...) Deveria lamentar-se que um Dostoievski não tenha vivido na proximidade desse interessantíssimo décadent, quero dizer, alguém que soubesse sentir justamente o fascínio comovente de uma tal mescla de sublime, de doentio e infantil”. [5]


Muito embora a referência ao romancista russo acima transcrita (extraída de O Anticristo, cap. 31) não represente mais do que um momento do nietzschiano anátema sobre o cristianismo; muito embora a citação não diga respeito mais que a uma passageira alusão — entretanto, com toda a agudeza que lhe é peculiar, soubera Nietzsche sintetizar o que agora haveremos de explorar com maior vagar. Em primeiro lugar, a afirmação de similitude entre aquele mundo social presente nos Evangelhos, e o subsolo da narrativa russa (a dostoievskiana, especificamente); em segundo lugar, a capacidade dostoievskiana de apreensão do múltiplo, apreensão expressa pela intuição de uma atmosfera em que não deixa o supino de estar mesclado ao maligno, em que elevação e decadência reúnem-se, fornecendo forma e matéria a uma mesma (id)entidade. Capacidade que Nietzsche designaria por senso de “psicologia”: isto é, uma extraordinária percepção do obscuro e do complexo, do oculto sob camadas espessas e sobrepostas, do não-dito, o escondido nas entrelinhas...[6]
A partir daqui desejamos pôr em relevo sobretudo a propriedade dostoievskiana de trazer à luz a intimidade da natureza de suas personagens, numa maiêutica sui generis. Algo que sintetizaremos grosso modo mediante a abordagem do duplo e, num sentido bem mais amplo, do múltiplo em Dostoiévski.
O Duplo é propriamente a denominação da segunda publicação do então jovem romancista, obra tão desconsiderada quando de sua divulgação (1846). Atualmente, porém, tem a crítica reconsiderado sua avaliação, enxergando nesta segunda novela (Pobre gente fora a primeira) o germe de toda a autêntica produção posterior, sobretudo no que concerne ao problema do — desdobramento das personagens. Trata-se justamente disto, em O Duplo: Goliádkin, funcionário público, é um humilhado e ofendido; com mania de perseguição e elevado complexo de inferioridade, acaba por imaginar um ente fisicamente igual a si, mas dotado com todas as disposições às quais não se concebe, ele mesmo, afeito. O funcionário projeta no tempo e no espaço uma sua personificação, uma sua cópia idêntica, apenas mais capaz e socialmente mais aceita, um alter ego que em todas as situações o ultrapassa. Desesperado ao ser vencido por esse outro que sempre o supera, Goliádkin finda por enlouquecer, chegando ao final da história a caminho do manicômio. Assim, em O Duplo, o desdobramento do protagonista dá-se numa concretização do mesmo em um sósia idealizado; consequentemente, dois seres isolados que lutam em igual plano físico. O passo decisivo de Dostoiévski foi, em textos posteriores, inverter a proposição: ao contrário de desdobrar um ente em dois, absorver vários entes no interior de um só (como no caso de Viersílov, pai do Adolescente) — o que de qualquer maneira eleva a novela juvenil à condição de gênese da polifonia dostoievskiana.[7]
Segundo o crítico russo Mikhail Bakhtin, a polifonia é um dos principais elementos distinguidores da produção de Dostoiévski, frente a outros diversos romancistas. Opostamente ao romance tradicional, em que um mundo unitário, monológico e homofônico é apresentado, seguindo a narrativa um fim predestinado pela onipotência do autor, encontraríamos na escrita polifônica a presença da pluralidade e dialogicidade, em que ganham relevo as idiossincrasias de cada personagem, a despeito do posicionamento de seu criador.[8] No caso de Os Demônios bem podemos apontar a polifonia como realmente definidora de todo a tessitura do romance, múltiplo por excelência.
Mas uma tal consideração vem na verdade a constituir um problema: como conciliarmos a polifonia dostoievskiana defendida por Bakhtin e a finalidade de nosso estudo? Se, conforme postulamos, uma intenção primordial do romance a que nos atemos é a de enaltecer o vínculo necessário entre ação moral e escolha religiosa, até que ponto não seria tal intenção a real condutora da ação e mentalidade das personagens? Até que ponto a interferência do autor incide sobre a construção narrativa e, por conseguinte, vem a romper a própria estrutura polifônica do escrito?
— Não fosse exatamente a complexidade típica da personalidade dostoievskiana e Os Demônios seria um fracasso enquanto romance: mais lucraria o escritor elaborando livros de feitio pregatório, qual o último Leon Tolstoi.[9] Mas há em Os Demônios uma pluralidade quamanha de personalidades e acontecimentos, uma tamanha quantidade de situações e reflexões, que o múltiplo e o dialético se contrapõem ao unívoco e monológico, daí decorrendo uma gama inúmera de quadros e figuras imensamente diversificados entre si. Realmente a diversidade convive num plano nivelado, sem que a escolha do autor chegue a indicar qualquer relevo ou preferência significativa de contorno a este ou aquele herói: as teses e antíteses são apresentadas com uma tonalidade similar, alcançando as oposições uma expressividade em tudo equivalente. Sim, diríamos que em Dostoiévski a expressão narrativa é tal que muito natural é nos perdermos numa suspensão insatisfatória e chegarmos ao final do livro com a pergunta nos lábios: afinal, que posicionamento tomarmos diante de — ? O que, de certo modo, eleva o texto da condição de simples panfleto, propaganda ideológica, à condição de literatura, boa literatura, literatura ímpar. O que também nos conduz à conclusão de que, a despeito do autor mesmo e da intenção que para si programara no concernente à finalidade do escrito, este acaba por ultrapassar programas preestabelecidos, ganhando corpo e espírito próprios, rompendo os limites de uma ideologia previamente tracejada. Não procuraremos, portanto, conciliar a perspectiva polifônica e a finalidade de nosso estudo, porque não há dissociação entre uma e outra: na verdade, nada há a ser conciliado. Certamente o universo no qual se movem Raskólhnikovs e Alióchas é um universo que primariamente diz respeito aos anseios e projetos de um Dostoiévski singular. Mas uma vez posto o problema, o tratamento oferecido é plural. E o que a princípio poderia parecer unívoco, estende-se e expande-se a ponto de alcançar o multívoco e o polifórmico. Enfim, se uma visão geral do romance vem a confirmar que podemos estabelecer a relação ético-metafísica como questão, entretanto a partir do mesmo romance chegamos à conclusão de que tal relação apresenta-se sob os mais variados matizes, conforme sejam abordados estes ou aqueles heróis e anti-heróis. Seguiremos com uma pequena explanação acerca das razões motivadores de — Os Demônios...

3. Niilismo Russo: Os Demônios, de Dostoiévski

“Dostoiévski começou a escrever Os Demônios, no outono de 1870 para a revista de Katkov, Ruskii Vestnik (O Mensageiro da Rússia), onde foi aparecendo parceladamente até 1872. O romance, pelo seu tom combativo e pela sua crítica violenta e feroz, provocou as maiores reações, tanto a favor como contra. É que Dostoiévski, dominado por um nacionalismo de fundo messiânico e profético, punha-se ao lado da ordem vigente e da monarquia, investia contra o liberalismo, o cientificismo, o europeísmo, o socialismo e o niilismo, num tom bíblico e condenatório.”[10]

Sergei Netchaev passou à posteridade a reputação de um caráter no mínimo, maquiavélico: seus impulsos exacerbadamente niilistas bem condiziam com as proclamações que redigia e as ações que empregava. Jovem revolucionário de um ímpeto astuto e perigoso, não se importava com a utilização de quaisquer meios, desde que visando a um fim determinado: a Revolução. Importante para Netchaev foi a ligação que veio a estabelecer em 1869 com o mais renomado ativista russo do período: Mikhail Alexandrovitch Bakunin. Valendo-se justamente da notoriedade do célebre anarquista (de quem tomou emprestada a assinatura),[11] Netchaev publicara na ocasião opúsculos quais o Catecismo Revolucionário e Princípios da Revolução, em que apareciam defendidas suas práticas duvidosas, seus arroubos destrutivos.
E essas práticas, e esses arroubos haveriam de culminar a 21 de novembro daquele ano quando Netchaev, já desligado de Bakunin, lidera o assassínio do estudante Ivanov em nome da organização Vingança Popular: por querer desligar-se do grupo (ao qual também pertencia), foi Ivanov executado. Descoberto o crime, evade-se o mentor rapidamente, deixando à polícia o trabalho de julgar os quatro demais cúmplices.
Como vemos, Netchaev representa uma certa parcela de ativistas que, sob a égide da transformação fulgurante, disseminavam pela Rússia do século XIX anseios de destruição, aniquilamento, privilegiando os aspectos demolidores do pensamento socialista. Lutavam, não somente contra o czarismo, mas contra a existência de qualquer “antiga” ordem... E no entanto, a despeito do interesse que por si só Netchaev pudesse vir a despertar para um estudo maior, as considerações agora apresentadas têm como fundamento uma outra motivação mais específica: o fato de haver sido o caso Netchaev o responsável exatamente, pela configuração de uma das mais tensas/intensas obras dostoievskianas.
Percebendo a oportunidade e a urgência de ceifar com um só golpe (um só romance) todo o ideário que lhe repugnava, Dostoiévski tencionara a redação de uma obra que denunciasse e combatesse os exageros de um tempo cada vez mais afeito à cientificidade sistematizada, ao amoralismo e à ocidentalização, acabando por oferecer ao mundo (o ocidental, inclusive) uma tragédia de proporções escabrosas.[12]
Os Demônios é, consequentemente, um romance engajado, um romance “de tese”, ainda que extrapolando (como o salientamos anteriormente) essas considerações primeiras. O episódio da morte do estudante Ivanov (no romance, Chátov) abre perspectivas para que as elucubrações do autor atinjam um cume de morbidez superior ao encontrado em Crime e castigo ou em O Idiota. Toda a angústia metafísica, todo o desespero recôndito, toda a ira, todas as trevas, todo o inferno agonizante de uma alma — estão presentes em Os Demônios. O escritor moldara ali a visão de um apocalipse sem redenção, sem vitória e eleição dos justos, sem elevação do Bem, e tendo como pano de fundo um acontecimento político! Também não é de se estranhar que um fato político, aparentemente de tão pouca monta, possa vir a servir como tema ao autor: com sua aguda visão, enxerga Dostoiévski a possibilidade única de instaurar ali um combate a vários elementos então vistos como grandes males — a crescente onda socialista entre os estudantes e intelectuais do período (e com o socialismo, o niilismo); a disseminação do cientificismo e do liberalismo; o crescimento, enfim, da ideia de ocidentalização: isto é, a integração gradual da Rússia no modelo e mundo (e mercado) europeus.
— Dostoiévski quis expurgar todos os endemoninhados que impediam a velha Rússia de realizar sua devida condição de Terra Prometida, Terra abençoada, única ainda não absolutamente contaminada pelas promessas do desenvolvimento social, científico, tecnológico (neste sentido o conto Sonho de um homem ridículo, presente no Diário de um escritor, pode ser visto como perfeita metáfora de um povo puro — o russo — que se perverte pela implantação de valores estranhos à população inocente). Dostoiévski é conservador porque vê na conservação das origens russas uma missão imbuída de caráter universal: a de oposição à crescente desumanização e objetificação deflagradas, seja por um capitalismo que se fazia cada vez mais avassalador, seja por um socialismo que instaurava no materialismo (dialético ou histórico) seu ponto de partida.
Tamanho enfrentamento resume-se, conflui para o combate a um Mal único — o Ateísmo — assumidor de diversas faces: o Ateísmo dentro e fora de Dostoiévski.[13] Sim, Os Demônios reflete a tragédia vivenciada pelo autor: uma tragédia particularíssima, a tragédia da existência de Deus. “(...) Não sei como é com os outros e sinto que não posso fazer como toda a gente. Cada qual pensa, depois, imediatamente, pensa em outra coisa. Eu não posso pensar em nenhuma outra. Penso a vida inteira na mesma coisa. Deus me tem atormentado a vida inteira.” [14]
 Combater o ceticismo crescente de seu século era para ele uma necessidade, como era uma necessidade enfrentar e derrotar seus duplos diabólicos. O questionar-se acerca de Deus é o questionar-se acerca de si, do homem. Negar Deus é negar a humanidade no homem, contemplar o Nada! ... Um Nada compreendido como anulação, nulificação do ser — tornado, ele mesmo, nada...
...O mais terrível dentre os escritos de Dostoiévski é nada menos que um abismo, um precipício, um despenhadeiro iniludível!...
Os Demônios é, em verdade, um desfile interminável de maus espíritos uma vez infiltrados em corpo são (a Rússia), espíritos que necessitam ser agora exorcizados. A apreciação dessas entidades malignas interessa por implicar uma demarcação de “tipos ideais”, personificações que de certo modo demarcam, para além de uma simples individualidade, uma — idealidade: precisamente, são indivíduos-ideias em vertiginoso movimento...
        
4. Absurdo Experimental e Absurdo Racional

“— Tenho muitas vezes pensado no suicídio. Mas sempre me vinha uma nova ideia: se por exemplo se cometesse um crime e algo de condenável, isto é, de vergonhoso, uma vilania, mas perfeitamente covarde e... ridícula; alguma coisa de que a humanidade conservaria a lembrança durante séculos, de que falaria, e sobre a qual escarraria ainda dentro de mil anos. E de repente este pensamento: uma bala na cabeça e nada mais restará. Que importa o mundo então? Que importa que ele conspurque o ato infame durante séculos, não é?” [15]

Da extensa galeria de maníacos, apresentaremos duas figuras primeiramente: Nikolai Vsiévolodovitch Stavróguin, e o engenheiro Kirílov. O primeiro é controvertido, sensualista, desde o início do enredo realizador das ações mais estranhas e gratuitas; o segundo, um idealista peculiar, acuado e amuado, nietzschiano por excelência. Ambos negadores de Deus, embora cada qual com suas justificativas particulares.
Assim Stavróguin, ousando rebelar-se contra o Criador, desce um a um os degraus da — degradação. A todo instante busca redimir-se, intercalando contudo entre tais tentativas, uma nova infâmia, uma nova vilania. Busca a correção, porém não encontra razões pelas quais deva ser bom. Então torna a agir malignamente: puxa a um velho senhor pelo nariz diante da sociedade, humilhando-o sem outro motivo aparente senão o prazer de o fazer; morde simplesmente a orelha do governador da província; bate-se em duelo tão tranquilamente, qual se não fosse sua existência posta em risco; mas ao mesmo tempo leva uma bofetada e não a retribui; casa-se com uma infeliz mulher coxa e louca (qual a mãe de Smierdiákov, dos Karamázovi); intenta tornar públicas todas as suas atrocidades como forma de expiação de culpa. — Stavróguin é morno: conforme o definiu o próprio Kirílov, quando crê, não crê que crê; e quando não crê, não crê que não crê.[16] Exerce porém estranha influência sobre todos os que o cercam: o estudante Chátov o admira como a um benfeitor; também Kirílov muito o respeita; Piotr Stiepânovitch dele espera algo de grandioso; Liebdiákin, o bêbedo, o teme; Lisa e Dacha o amam; inúmeros o detestam, mas indiferentes não podem nunca ser considerados. — Desmedida atração, que outra denominação poderia receber senão, demoníaca? Stavróguin, afinal (bem como seu sucessor Ivan Karamázov), não chega mesmo a instantes de alucinação em que diz dialogar com o próprio Diabo?
Em Stavróguin portanto a antiga e sempiterna luta do Bem e do Mal é travada: não como o conflito maniqueísta de duas entidades personificadas num mundo supra-sensível; e isto é o mais horrendo: o Bem e o Mal lutam no interior do indivíduo (no interior de Stavróguin e Dostoiévski), de tal maneira confundidos, de tal maneira entrelaçados, que há o perigo iminente de não se poder resistir ao embate, há o perigo da derrota fulgurante e definitiva, nada, nada assegurando a vitória do... Bem.
Ao contrário de Stavróguin, Kirílov não se manifesta através de atos caóticos ou desesperados: caótico e desesperado é, sim, seu raciocínio. “(...) A vida é um sofrimento, a vida é um terror e o homem é infeliz. Hoje tudo é sofrimento e terror. Hoje o homem ama a vida, porque ama o sofrimento e o terror. E assim age”.[17]
Mas Kirílov só agirá, propriamente, uma vez, e agirá definitivamente. — O engenheiro é a mais nova encarnação do homem do subterrâneo, adoentado, sorumbático, possuidor de clarividente consciência, sempre metido consigo mesmo. Stavróguin é a personificação da liberdade absurda, o homem com todas as suas possibilidades e escolhas à frente; realiza-se quando age — quando experimenta. Kirílov é igualmente absurdo e livre, mas de uma liberdade que se comprova através de uma bizarra lógica dedutiva, uma idealidade incréu. Seu próprio pensamento condu-lo ao aniquilamento, ao suicídio: Deus não existe, a não ser sob a forma de temor no homem. Logo, se o homem extermina tamanha temerosidade, transforma-se prontamente em Deus. “Haverá liberdade completa quando for totalmente indiferente viver ou não viver. Tal é o fim universal”.[18]
E Kirílov pretende dar o exemplo, tornar-se o homem-Deus, liquidando-se. Desvelando-se aos poucos através das mais escabrosas atitudes Stavróguin não racionaliza qual Kirílov, sua condição. Apenas a evidencia alucinadamente, tresloucadamente, através deste ou daquele inconcebível desvario.
A liberdade absurda do homem sem Deus configura-se, em Stavróguin, enquanto ausência de qualquer referencial pelo qual pautar a ação: liberdade torna-se libertinismo; e este, o absurdo experimental, culmina com uma corda no pescoço. Embora o fim de Kirílov não se mostre muito diverso (seu absurdo racional termina com um tiro nos miolos), contudo, deve ser contraposta sua morte àquela de Stavróguin: de acordo com sua personalíssima teoria, o suicídio (suprema negação de si) coincidiria no tempo com a suprema afirmação de si; para o engenheiro penseroso, negação e afirmação aliam-se temporalmente num gesto único, irrevogável.  

5. A Conspiração

“— Depois de ter-me consagrado inteiramente ao estudo da organização social que deve subsistir no futuro ao estado de coisas atual, cheguei à convicção de que todos os inventores de sistemas sociais, desde os tempos mais remotos até este ano de 187..., foram sonhadores, contadores de estórias de fadas, simplórios que se contradiziam a si mesmos e nada entendiam da ciência natural e desse estranho animal que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier são colunas de alumínio, boas quando muito para os pardais e não para a sociedade humana. Ora, como uma nova forma de organização social tornou-se necessária e já que estamos afinal decididos a passar à ação, para evitar mais longa hesitação diante do sistema a escolher, proponho o meu. Ei-lo (e [Chigáliev] bateu no próprio caderno)”. [19]

Piotr Stiepânovitch Vierkhoviénski, filho de Stiepan Trofímovitch (pseudoliterato fracassado), é o terceiro demônio digno de nota. Realmente é Stiepânovitch a personagem responsável pelo desenrolar do enredo central do romance, é ele o organizador da conspiração subversiva que planeja a total transformação da Rússia. É ele quem cumpre, na história, o papel de Netchaev.
Ora irônico, ora cruel, ora sarcástico, ora espirituoso, Vierkhoviénski desconhece qualquer indício do que seja moralidade, ignora o mínimo possível de honestidade. De modo oposto a Stavróguin e Kirílov, não é sincero em suas afirmações, não saltaria jamais rumo ao abismo (antes, empurraria um outro em seu lugar). Afirma empreender uma organização internacional do socialismo, liderando células espalhadas pelas mais diversas localidades, e entretanto de nosso real conhecimento, uma apenas há; mantém um constante clima de desconfiança e intranquilidade entre os companheiros de conventículo, vendo nisto algo de bastante positivo; conduz-se displicentemente nas reuniões do grupo como se nada tivesse com aquilo, assumindo um insuportável ar de superioridade; estimula o suicídio de Kirílov e participa, enfim, do assassinato de Chátov, membro já desligado do bando.
E o bando de Vierkhoviénski é composto em sua maioria por indivíduos grosseiros, sem qualquer maior formação política, a não ser suas particularíssimas opiniões tantas vezes discordantes. Dostoiévski chegou, por duas vezes, a participar pessoalmente dessa espécie de reuniões: a primeira vez foi a que motivou sua prisão quando da perseguição ao grupo de Pietrachévski (e a que aludimos, no princípio de nosso texto); a segunda quando do Primeiro Congresso da Liga da Paz e da Liberdade, na Genebra de 1867, ocasião em que teve a oportunidade de ouvir discursos pronunciados pelo próprio Bakunin. Seja como for, é cruel a pintura do conciliábulo bosquejada pelo escritor, às vezes incorrendo no aspecto caricatural e grotesco. Liámchim, Lipútin, os Virguinskis, o jovem seminarista e os demais participantes do conluio nada fazem senão discordar uns dos outros, numa patetice burlesca, da qual sequer Piotr Stiepânovitch escapa (e não deseja escapar). — Somente em Chigáliev parece haver um pouco mais de compostura.
Chigáliev é, afinal, o teórico do grupo, aquele que se preocupa fundamentalmente com a instauração e manutenção da nova sociedade, a ser inaugurada logo após a completa destruição dos antigos alicerces.
Muito embora Chigáliev não desperte a consideração dos comparsas (que até gargalham enquanto o estudioso fala), é ele o responsável pela exposição de uma ideia que mais tarde seria melhor desenvolvida em Os Irmãos Karamázovi — a ideia do necessário esquecimento (sufocamento) da liberdade em nome da igualdade. “Partindo da liberdade ilimitada, cheguei ao despotismo sem limites. Acrescento, portanto, que não poderia haver solução do problema social diferente da minha”.[20]
E a solução de Chigáliev consiste em: divisão da humanidade em duas partes desiguais, estando um décimo da sociedade destinado ao exercício da autoridade suprema sobre a outra parte, condenada esta, à sôfrega submissão, ao estado de — rebanho. Somente o estreito controle social impediria o aparecimento de qualquer individualidade capaz de se sobressair aos demais (fora Cíceros e Shakespeares!); somente o sistema de Chigáliev possibilitaria o nivelamento completo, absoluto (apenas seria um nivelamento por/para baixo!).
Em O Grande Inquisidor (na Segunda Parte d’Os Irmãos Karamázovi, Capítulo V), Ivan discute com Aliócha a mesmíssima questão, porém sob um prisma diferente. Imaginemos, conforme o poema de Ivan, que Jesus tenha voltado à Terra como prometido nas Escrituras; imaginemos que isto se haja passado na Idade Média... Como se daria a súbita recepção? O poema assim o conta: — encarcerados, teriam Jesus e sua Obra/seu Verbo sido novamente desacreditados, pois no falar do Grande Inquisidor, à população já não interessa a Palavra da liberdade oferecida pelo Filho do Homem. Ao contrário: a liberdade e a escolha (o reino dos céus) angustiam e desgostam, ao passo que o pão do mundo, este, contenta a humanidade. Diz o Inquisidor a Jesus:

“Mas, Tu não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, estimando que era ela incompatível com a obediência comprada por meio de pães. Replicaste que o homem não vive somente de pão; mas sabes que, em nome desse pão terrestre, o Espírito da terra se insurgirá contra Ti, lutará e Te vencerá, que todos o seguirão, gritando: ‘Quem é semelhante a esse animal? Ele nos deu o fogo do céu!’ Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. ‘Nutre-os e então exige deles que sejam virtuosos!’ Eis o que se inscreverá sobre o estandarte da revolta que abaterá o teu Templo”.[21]

Indubitavelmente o Inquisidor é representação do materialismo incipiente, alvo da crítica dostoievskiana: recordemos, entretanto, que tal crítica faz-se bidimensionada — defrontando-se tanto com o materialismo liberal, quanto com aquele de cunho socialista.[22]

6. Os Imolados de Deus

“Nenhum povo — começou ele [Chátov], fixando em Stavróguin um olhar severo e parecendo ler a palavra em um livro — pôde edificar-se e organizar-se sobre os únicos princípios da ciência e da razão. Este exemplo não foi dado por nenhum povo, salvo talvez pela duração de um instante e somente por estupidez. (...) O fim de todo movimento popular, em cada povo em particular, em cada período de sua história, é unicamente a procura de seu Deus, de seu Deus próprio, de seu Deus dele; e a fé nesse Deus, como no único e o único verdadeiro”.[23]

Finalmente, citaremos um disforme grupo composto por aqueles que de certa maneira acabam por apresentar um contraponto à dissolução desenfreada dos possessos; referimo-nos a outros “pobres diabos” [24] que, mesmo parcialmente, oferecem ainda indícios de crença na autenticidade do povo sofrido (ou seja, na autenticidade de uma oposição à ocidentalização); temos Chátov, o estudante assassinado; a louca Maria Timofiéievna; e até o liberal arruinado Stiepan Trofímovitch.
Chátov é o jovem contido, resguardado, vítima fatal da demência dos possuídos. Consegue, a despeito dele próprio não conseguir acreditar em Deus (mas insistir por querer acreditar), manter a pureza e cordialidade daquele que sabe perdoar seu semelhante. É o cordeiro imolado, é o simples de coração, sacrificado pela inépcia dos perdidos.
Maria Timofiéievna, alucinada e vidente, também sacrificada no romance, vislumbra sempre através da insanidade a realidade encoberta — seja esta o interior do “príncipe encantado” Stavróguin, seja o futuro promissor de sua gente. Maria é uma esquisita pitonisa, massacrada cotidianamente pelo irmão Lebdiákin, mas destemida, mantenedora de extraordinária lucidez, apesar da infeliz loucura. É a face mais obscura da plebe russa.
E enfim, Stiepan Trofímovitch: que enclausurado em casa de sua protetora Varvara Pietrovna, já tão avançado em idade e distante da gente humilde (embora sempre com uma postura liberal), decide finalmente abandonar a existência fácil de consumado parasita — e procurar o seio do povo. Uma vez mais, desditoso final: repentinamente diante da revelação, Stiepan desvenda pouco antes de perecer, finalmente para si — e para os leitores — o enigma simbólico do enredo. Pede ele a uma enfermeira que lhe leia uma passagem do Evangelho de São Lucas (Cap. VIII, 32 e seguintes), e murmura:

“(...) Ocorrem-me agora muitas ideias. Veja, é justamente como a nossa Rússia. Esses demônios saindo dum doente e entrando em porcos, são todas as chagas, miasmas, impurezas, os grandes e pequenos demônios que, durante séculos e séculos, acumularam-se na nossa querida Rússia. Oui, cette Russie que j’amais toujours. Mas uma grande ideia e uma vontade poderosa velam por ela do alto como sobre aquele desgraçado demoníaco; por isso serão expulsos dela todos esses demônios, toda essa impureza, toda essa torpeza que supura à superfície... eles mesmos pediram para entrar nos porcos. Talvez mesmo já tenham neles entrado. Somos nós e eles e Pietruchka [Piotr Stiepânovitch]... et les autres avec lui, e eu talvez por primeiro. Enfurecidos e furiosos, precipitar-nos-emos do alto do rochedo no mar e nos afogaremos todos, e será bem feito porque não merecemos senão isso. Mas o doente curar-se-á e sentar-se-á aos pés e nós o contemplaremos com espanto. Querida, vous comprendez aprés, agora isto me agita demais. Vous comprendez aprés... compreenderemos juntos.”[25]

7. O Fogo Bento. Conclusão

“Na antiga Rússia, os mujiques costumavam, na noite de Páscoa, levar das igrejas uma chama do fogo bento e acender uma lâmpada em cada cabana. E na escuridão da noite que os cercava, esse lume sagrado parecia pontear de estrelas o negrume dos descampados e das encostas. Parece que isso se faz hoje com a luz e o fogo que emanam da obra de Dostoiévski. E talvez as lâmpadas que acendemos agora ajudem a afastar um pouco da treva que dizem estar caindo sobre a terra, e permitam aguardar a chegada de novos dias de sol e claridade”. [26]

Não fosse o angustiado clima que perpassa toda a história da peça, poderia o final sangrento de Hamlet ceder lugar à comicidade: é quase demasiada a carnificina e mortandade que desfecham o último ato. Mas ora, nisto certamente é que se encontra a tragicidade peculiar ao drama: o elevado número de vítimas (de Ofélia ao jovem príncipe filósofo) somente vem confirmar a fatalidade abatida sobre as personagens. Também em Os Demônios a Morte abre suas asas em forma de leque... Vemos Liebdiákin e a irmã assassinados por Fiédka, o prisioneiro foragido, mais tarde encontrado de uma mesma maneira, morto. Lisa (desafortunada amante de Stavróguin), Chátov, Stiepan Trofímovitch, Kirílov, o próprio Nikolai Vsiévolodovitch, todos, todos dramaticamente ceifados por uma possessão demoníaca geral.
Dostoiévski premeditara um final tamanhamente aterrador. Desejava desenvolver uma crítica tão ferrenha que nenhuma ambiguidade doravante pudesse persistir quanto aos malefícios do processo de inumanidade então apenas em princípio. Desejava convencer a Rússia inteira, desejava convencer o mundo, desejava convencer, sobretudo, a si mesmo... E, no entanto, não obstante sua intenção tão estreitamente definida, delimitada, o conjunto da desventurosa aventura finda por explicitar a multiplicidade de perspectivas diante da questão: se Stavróguin e Kirílov abraçam fatidicamente o suicídio (e por razões diversas), a mesma descrença leva Chátov à insistência em crer (ainda que, pateticamente, não o consiga) e Vierkhoviénski a traçar seus planos mórbidos de arrasadora destruição. Todas estas posturas equiparam-se no interior da narrativa, totalizando um grande painel em que as ações e exposições do pensamento-sentimento de cada personagem acabe por criar um discurso múltiplo, apesar de seu ponto de partida único, a saber: o que viemos tentando delinear, a inter-relação entre ação e ideiaação moral e opção “metafísica”.
Certamente a visão social de Dostoiévski incorria em exageros que inclusive chegavam a aproximá-lo do poder conservador russo, o que não deixaremos de assinalar. Entretanto, é esse expor-se de maneira vária, sem que venha a ser traída a sua própria criação literária, o que precisamente o torna um artista exímio; o que o engrandece e eterniza é que seu discurso sobrepassa todos os particularismos, elevando-se à esfera de — Verbo: Palavra universal da condição humana.
Enquanto discurso universal, fica-nos a certeza de que, ideários à parte, um romance como Os Demônios torna-se bendita, abençoada obra do século XIX, e de todos os séculos e séculos.




ALVES DE AQUINO é professor de Filosofia da Universidade do Vale do Acaraú – UVA e poeta (tem por pseudônimo “O Poeta de Meia-Tigela”). Participou em 2007 da Antologia Massanova. Publicou Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas (2008 – 1ª edição; 2011 – 2ª edição) e Concerto nº 1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema – 1º movimento (2010).

Nota do autor — O presente ensaio é uma reelaboração do Capítulo III da Monografia de Graduação em Filosofia, apresentada na Universidade Estadual do Ceará, em 1997.
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BIBLIOGRAFIA CITADA

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski; trad. Paulo Bezerra. — Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo; trad. e apresentação de Mauro Gama. — Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.
—————— . Os Possessos; trad. Armando Ferreira. — Lisboa: Edição “Livros do Brasil”.
DOSTOIÉVSKI, Fédor M. Diário de um escritor; trad. E. Jacy Monteiro. — São Paulo: Edimax.
—————— . Obra Completa em quatro volumes; trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. — Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.
EHRARD, Marcelle. Literatura russa. — São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1956. (Coleção Saber Atual)
FRANK, Joseph. Dostoiévski: as sementes da revolta, 1821-1849; trad. Vera Pereira. — São Paulo: Edusp, 1999. 
FREUD, Sigmund. “Dostoiévski e o parricídio”. In: Edição Standart das Obras Completas de Freud (vol. XXI); trad. José Octávio de Aguiar Abreu. — Rio de Janeiro: Imago.
NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo; trad. Artur Morão. — Lisboa: Edições 70, 1997. (Coleção Textos Filosóficos)
Norte, Sérgio Augusto Queiroz. Bakunin: sangue, suor e barricadas. — Campinas, SP: Papirus Editora, 1988.
PESSANHA, Rodolfo Gomes. Dostoiévski: ambigüidade e ficção. — Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
ROSA, Virgínio Santa. Dostoiévski: um cristão torturado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1982.
SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. — São Paulo: Nova Cultural, 1982. (Coleção Os Pensadores)
WEBER, Max. O político e o cientista; trad. Carlos Grifo. — Lisboa: Editorial Presença, 1973.
WILSON, Edmund. Rumo à estação Finlândia. — São Paulo: Companhia das Letras, 1987.



[1] Dostoiévski, F. Obra completa (vol. III), pp.182-183.
[2] Freud, S. “Dostoiévski e o Parricídio”, p.205. A propósito, o biógrafo Joseph Frank apresenta-nos uma satisfatória apreciação do artigo de Freud, em apêndice ao seu Dostoiévski: as sementes da revolta (pp. 469-484).
[3] A respeito da associação entre os problemas moral e religioso, Sartre pontuaria em O Existencialismo é um Humanismo (p. 9): “Dostoiévski escreveu: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido.’ Eis o ponto de partida do existencialismo. De fato, tudo é permitido se Deus não existe, e por conseguinte, o homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dele nada a que se agarrar”.
[4] Apesar de Os Demônios ser o centro deste empreendimento, a intenção verdadeira é a de chegarmos à última página com uma impressão geral da relação referida (ética/metafísica), em Dostoiévski: daí intitularmos o presente artigo enquanto Os Demônios de Dostoiévski, e não apenas — Os Demônios, de Dostoiévski.
[5] Nietzsche, F. O Anticristo, p. 49.
[6] Neste sentido, é comum o emprego do termo “psicologia” em Nietzsche e Dostoiévski: não se trata aqui de uma disciplina ou ciência constituída, dotada de princípios e fundamentos estabelecidos, mas de uma apreensão intuitiva e imediata da natureza íntima do ser com o qual se entra em contato. Não sem razão Nietzsche declararia em carta a Peter Gast (13/02/1887): “Você conhece Dostoiévski? Com exceção de Stendhal, não conheço ninguém que me tenha produzido tal prazer e surpresa: um psicólogo com o qual me entendo”.
[7] É claro que a duplicidade continuaria a exercer sua marca: em Os Irmãos Karamázovi, Ivan desdobra-se no próprio diabo, seu duplo bizarro. Contudo, também os quatro irmãos ultrapassam toda duplicidade, instaurando a multiplicidade não apenas conjuntamente, enquanto individualidades sobrepostas, mas sobretudo enquanto portadores do múltiplo em si mesmos.
[8] Conforme postulado por Mikhail Bakhtin, logo no início de seus Problemas da poética de Dostoiévski (p. 4): “A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve em seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante” (itálicos do autor).
[9] Ehrhard, M. Literatura Russa, p. 85: “Dostoiévski e Tolstói, ambos profundamente russos, tiveram em comum a ardente necessidade de encontrar a verdade redentora e anunciá-la ao mundo, mas seria difícil achar temperamentos e talentos mais opostos. A vida de Dostoiévski foi marcada por terríveis provações, a de Tolstói decorreu em aparente calma; Dostoiévski trabalhava com febre, Tolstói sem pressa; Dostoiévski transborda de vigor; num as revessas agitadas, os impulsos irracionais, noutro a lógica e a tenacidade; Dostoiévski era um místico apesar de suas dúvidas; Tolstói um racionalista apesar de suas crises religiosas; Dostoiévski desejava ser conservador, Tolstói destruidor. Ambos encheram seus romances de ideias, mas a filosofia de Dostoiévski procura-se a si própria em profundidade, hesita, discute; Tolstói apega-se a algumas idéias muito simples, que variam no curso de sua vida e que ele reafirma sempre com convicção total”.
[10] Dostoiévski, F., op. cit. p.795 (Nota preliminar de Oscar Mendes).
[11] Os textos eram da integral autoria de Netchaev; assinavam-se, no entanto, como fossem fruto de uma sua parceria com Bakunin. Para maior esclarecimento da relação Bakunin-Netchaev, Bakunin: sangue, suor e barricadas, de Sérgio Augusto Queiroz Norte, ou ainda Rumo à estação Finlândia, de Edmund Wilson (cap. Personagens Históricos: Bakunin, p. 249).
[12] Não sem razão Camus levara à cena em 1959, Os Possessos, adaptação teatral de Os Demônios em três atos.
[13] Justamente o escritor planejou ser O Ateísmo sua última obra: mais tarde denominada A Vida de um Grande Pecador, não pôde, contudo, ser concluída.
[14] Dostoiévski, F., op. cit. p. 890.
[15] Ibidem, p. 988.
[16] Ibidem, p. 663.
[17] Ibidem, p. 888-889.
[18] Ibidem, p. 889.
[19] Ibidem, p. 1.125.
[20] Ibidem, p. 1.125.
[21] Dostoiévski, F., Obra completa (vol. IV), p. 224.
[22] Não resta dúvida de que a gênese de O Grande Inquisidor se encontra na teoria social de Chigáliev. “(...) Quem age em conformidade com uma ética da convicção não suporta a irracionalidade ética do mundo. É um “racionalista” cósmico-ético. Aqueles de entre vocês que conhecem a obra de Dostoievski recordarão a este propósito a cena do Grande Inquisidor, onde este problema é apresentado em termos muito profundos”: Max Weber, O político e o cientista, p. 128.
[23] Dostoiévski, F., Obra completa (vol. III), p. 1000.
[24] Pessanha, Rodolfo G. Dostoiévski: ambiguidade e ficção, p. 105.
[25] Dostoiévski, F., op. cit., pp. 1329-1330.
[26] Santa Rosa, Virgínio. Dostoievski, um cristão torturado, p. 442.

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