La reproduction interdite, obra de René Magritte (1898-1967) "O que o homem busca por meio da religião e da metafísica? — Encontrar a mais bela simetria de reflexão entre o Eu e o Isso e, assim, reencontrar-se no Mundo. No entanto, segundo Wittgenstein, a verdade mais importante não pode ser dita na linguagem da Lógica: esse “indizível”, que o filósofo identifica com o “místico”, apenas se mostra no mundo silencioso das imagens especulares." (M. Bulcão) “Meu objetivo é simples, é o entendimento completo do universo: saber por que ele é como é e por que ele existe em absoluto.” Stephen Hawking Tenho observado que as críticas ao misticismo dirigem-se, na maioria das vezes, à acepção que o senso comum confere a este termo. Nesse sentido, o místico é uma pessoa que acredita em “qualidades ocultas ou poderes para os quais não se pode oferecer uma explicação empírica ou racional”, isto é, que crê em explicações absurdas para os fenômenos. Essa acepção do termo “misticismo” não é injustificada. Afinal, são as próprias pessoas para as quais as explicações absurdas exercem grande magnetismo que primeiro qualificam a si mesmas como místicas. Ora, o significado das palavras não é determinado apenas pelos etimologistas ou pela intenção de quem as elabora, mas também pela prática, pelo uso que se faz delas. Essa subcategoria de misticismo, constituída de indivíduos cujas crenças têm por critério unicamente a fé, é a expressão cabal do Paradoxo de Tertuliano. Segundo este paradoxo, credo quia absurdum est; vale dizer, “acredito porque é absurdo”. Por quê? Entre outros motivos, porque algumas proposições absurdas têm o poder de encantar e, assim, de arrebatar algumas pessoas da sua rotina tediosa e desse mundo “desencantado” pelos limites que as leis da física e as regras da lógica impõem à sua existência. Com exceção dos que amam a verdade (pois, quem ama sem hipocrisia, aceita as dores que o seu amor lhe inflige), as pessoas acreditam no que as faz sentirem-se bem, acreditam porque se sentem bem em acreditar. Cenestesia positiva ou bem-estar, eis o que elas mais esperam de suas crenças. Infelizmente, a verdade nem sempre nos faz sentirmos bem. Com frequência, a verdade dói, incomoda, é causa de desconforto e de sofrimento. Por isso que é comum o divórcio entre crença e evidência e, por conseguinte, o concubinato daquela com o absurdo. De resto, teorias absurdas apresentam um grande trunfo em relação às demais: a vantagem de que suas lacunas podem ser logo preenchidas por outras explicações igualmente absurdas. Essas pessoas, “místicas” num certo sentido, também são do tipo que não consegue nunca superar o pensamento mágico da infância. Ora, nas crianças o pensamento ainda está preso às leis de formação da linguagem – o processo de significação se dá associando-se signos e coisas por meio de metáforas (relações de similaridade) e metonímias (relações de contiguidade) –, por isso que elas levam as explicações metonímicas e metafóricas a sério demais e elaboram seus raciocínios da mesma forma como se constroem sonhos. Por exemplo: se, quando o silêncio é total, mesmo assim a gente escuta um zunido (o barulho do sangue circulando na cabeça, penso eu), se esse zunido é similar ao rangido agudo das rodas de uma carroça, e se é verdade que a Terra é uma esfera que gira “igualzinho” às rodas de uma carroça, então esse zunido que escuto no silêncio da noite, como escreveu Gabriel Garcia Márquez em um de seus contos, é “o barulho da Terra girando em torno do seu eixo enferrujado”. Não há dúvidas que há beleza nesta explicação. Se nenhum resquício desse pensamento mágico permanecesse na idade adulta, viveríamos num mundo sem poesia. Só que, ao contrário desses que se autodesignam “místicos”, os poetas e os que gostam dos poetas (pelo menos os que não são místicos) apenas brincam com a magia das palavras, ou seja, não a levam tanto a sério a ponto de confundir realidade com sonho. Mas vale lembrar que o termo “misticismo” tem outro significado mais antigo. Denota, desde a sua origem, uma tradição religiosa que se desenvolveu em oposição a algumas idéias que toda corporação eclesiástica tende naturalmente a impor como tabu: a ideia de que a natureza divina é incognoscível e, também, que é impossível estabelecer-se uma união direta do indivíduo com Deus (devido ao mal que há em nós, porque já nascemos em pecado ou porque é necessário obedecer a uma hierarquia em que sacerdotes, mortos e anjos figuram como elos intermediários dessa união). Contrapondo-se a essas ideias – meras justificações do ofício sacerdotal – os místicos sustentam a crença de que a natureza de Deus pode ser contemplada pelo homem e que, por meio desta contemplação, o indivíduo une-se a Deus, união esta que tem por corolário um sentimento de êxtase. Os místicos também creem num acesso espiritual a domínios do conhecimento que são inacessíveis ao pensamento comum, ao pensamento empírico que apenas “mede”: que é possível uma experiência com o Real não filtrada pelos órgãos sensoriais e intermediada por um pensamento não-verbal, como o é grande parte do pensamento matemático – um pensamento geométrico que não fala nem escuta, mas que aponta e “vê”, e que ao ver “reconhece”; vale dizer, um pensamento que é um esforço para “recordar” a verdade e cujos insights são como déjà vus. (Antes de atirar esta ideia “intuicionista” no limbo do antiintelectualismo, lembre-se que, ao contrário do que postula um tipo ingênuo de intelectualista, nem sempre a verdade de uma proposição tem que ser necessariamente demonstrada pelo raciocínio ou pela experiência. Existem proposições matemáticas cuja verdade não pode ser provada pela própria matemática, mas que, no entanto, pode-se – em princípio – “ver” que são verdadeiras, como é o caso da proposição aritmética Pk(K) de Gödel. Isso indica que até mesmo a matemática elementar, que talvez seja a base da razão ou a “razão mínima”, não é apenas análise, mas também intuição, e, provavelmente, pensamento intuitivo de natureza não-algorítmica. Ora, é um nonsense o enunciado “a intuição matemática é irracional”.) Ao contrário dos "místicos" que falamos há pouco, a maioria desses outros místicos, embora não muito chegada ao conhecimento empírico, é racionalista no sentido de “inatista”, pois crê que a Verdade – isto é, o conhecimento do Todo – pode ser alcançada operando-se unicamente com as categorias inatas do pensamento. Sua concepção de Deus é também mais refinada, mais filosófica (apesar de aforística) e menos alegórica ou folclórica: Deus é a totalidade que compreende tudo que existe, o Uno Primitivo (Plotino) ou então o princípio ordenador da Natureza. Para os teólogos hinduístas, Brahman não é a sua popular representação sensível, mas, segundo a definição que consta nos Upanixades (seções conclusivas e filosóficas dos Vedas), é Ele “a base de todo o ser; aquilo em virtude do qual todas as outras coisas existem; a realidade última que possibilita o tempo, o espaço e a ordem natural.” [1] Ou seja, Deus é a mais geral de todas as leis, algo indistinto daquilo que o filósofo racionalista Spinoza denominou de natura naturans (a natureza gerando ou a geratriz da natureza) ou do que Leibniz, também filósofo racionalista, definiu como a “razão suficiente” do Universo: razão pela qual o Universo existe em vez de nada existir. A imaginação desses místicos, longe de ser livremente poética, assenta-se em variedades de lógica difusa (Hegel, o elaborador da lógica dialética, sofreu grande influência da mística especulativa judaico-cristã, não tendo sido à toa, portanto, o fato de Bertrand Russell ter qualificado a sua dialética como uma lógica mística) e, em muitos casos, na matemática; tanto que vários deles foram matemáticos, como Pitágoras e o grande místico hinduísta Mahavira. Este último, que foi contemporâneo de Heráclito, Buda, Lao-Tsé e Zoroastro, é autor de ensaios matemáticos escritos na forma de versos, por entender ele ser esta a forma que mais facilita a memorização. O pensamento matemático parte de determinados entes (números, axiomas...) que são puramente abstratos, isto é, não são sensíveis e apenas existem no pensamento. No entanto, partindo dos mesmos axiomas todo e qualquer matemático chega inevitavelmente à mesma conclusão. Ou seja, partindo-se de entidades subjetivas, chega-se a algo tão “objetivo” quanto os objetos do mundo exterior. Por exemplo, eu posso escrever uma função matemática escolhendo ao acaso as grandezas. Não sei ainda o seu resultado, mas ele já existe, é objetivo, e pelo raciocínio qualquer um pode chegar a ele antes de mim. É como se o pensamento puro tivesse uma autonomia em relação aos sujeitos que pensam; uma autonomia que produz coisas objetivas e independentes da nossa vontade tanto quanto o Sol, a Lua, as estrelas e outros entes sensíveis. O interessante é que as regularidades e padrões que se verificam no mundo físico podem ser expressos no sistema de notação matemático e, mediante cálculos com essas “fórmulas”, podemos prever fenômenos sensíveis, antever acontecimentos futuros, conhecê-los antes de experimentá-los. E, o que não é só interessante, mas também esdrúxulo: os matemáticos puros, que não se interessam muito pelo mundo físico, com base apenas no pensamento abstrato costumam inventar modelos matemáticos para o mundo com propriedades tão estranhas que é impossível não descartá-los como irreais. Até que, décadas depois, aparece um cientista empírico nada afeito a especulações puras que descobre, muitas vezes consternado, que os resultados de seus experimentos e observações só são possíveis caso a realidade apresente aquelas propriedades estranhas, aparentemente irreais, de modo que não há outro jeito a não ser trabalhar, a partir de então, com aquele modelo matemático que um fetichista das formas ejaculou sem sair do gabinete. Isso aconteceu com Einstein, que enquadrou suas hipóteses acerca da estrutura do espaço-tempo em modelos matemáticos preexistentes e que, na época em que foram construídos, despertaram interesse apenas marginal: a geometria não-euclidiana de Riemann (geometria elíptica) e as transformações de Lorentz. Na história do pensamento, houve épocas em que a ideia da existência de Deus (de um princípio ordenador “anímico”) e a crença na inexistência do acaso (determinismo teleológico) eram tradições tão arraigadas – as pesadas heranças deixadas pela humanidade arcaica, naqueles tempos ainda um passado próximo – que sequer imaginavam questioná-las. Espíritos mais exigentes, mas de homens que pertenciam ao seu tempo, quando muito punham em dúvida os significados correntes da palavra Deus, bem como suas representações populares. Mantinham, entretanto, o significante “Deus” em suas novas explicações indubitavelmente mais racionais das questões fundamentais e atemporais, como os problemas da origem e destino do Universo ou de por que existe algo quando bem poderia não existir nada e, também, o do sentido da existência. Os místicos stricto sensu pertenciam à categoria desses “espíritos mais exigentes”: por serem apaixonados pelo conhecimento, não aceitavam o incognoscível. Assim como Steven Weinberg, o cientista que descobriu a força eletrofraca, viviam estes místicos obcecados pelo “sonho de uma teoria final”, pois entendiam eles que o acesso ao conhecimento da natureza de Deus, do real significado da palavra Deus – a raison d'être finalmente reduzida à evidência – não é nada menos que o sentido da vida, isto é, que a Verdade é a Beleza e a Beleza é o Bem; de modo que a contemplação dessa verdade (da Verdade com “V” maiúsculo) ou a visão dessa evidência representa o momento de êxtase em que a razão subjetiva e a Razão objetiva se reconhecem e se identificam. Aliás, a seguinte sentença do físico John Wheeler pode ser perfeitamente atribuída a alguns desses místicos: “Certamente, um dia, perceberemos que a verdade central é tão simples, tão bela, tão óbvia que não poderemos deixar de nos perguntar: Oh, como poderia ser de outra forma? Como pudemos permanecer cegos por tanto tempo?”. Não se resignavam os místicos da velha cepa com o pensamento mágico indiferente ao absurdo das pessoas comuns, que dava sentido e norte à vida criando fadas e anjos para encantá-las e, ao mesmo tempo, demônios e dragões para castigá-las. Por outro lado, sua preocupação era com o todo e com a razão profunda. Ora, o todo é muito grande, talvez infinito e, portanto, imensurável. E, assim como o fundo de um poço muito profundo perde-se na escuridão mesmo quando é meio-dia (devido à sombra da cabeça de quem tenta observá-lo), a razão última pode ser profunda demais para o alcance dos órgãos dos sentidos e de suas extensões mecânicas. Demais, o Universo entendido como a “unidade” de tudo que existe é “um”, algo singular, de sorte que não há nada fora dele – uma alteridade material – com que se possa compará-lo e, desta comparação, extrair um padrão ou a lei que implique a sua existência. Sendo assim, o pensamento empírico que mede e compara não seria o mais apropriado para esta empreitada. Melhor, então, apelar para este outro pensamento que não mede, mas “conta”, que não é só análise, mas também intuição, e que é tão objetivo quanto o mundo físico à nossa volta. Até porque não é inadmissível supor que um segmento desse pensamento objetivo (o assentamento do Mundo 3 da epistemologia de Karl Popper) tenha uma relação de antecedência com a objetividade do mundo natural. O físico teórico Roger Penrose é um dos que defendem este ponto de vista “platônico”, um entre muitos físicos matemáticos que “preferem pensar o mundo físico (...) como algo que emerge do mundo (‘atemporal’) da matemática”; pois que, “quanto mais entendemos sobre o mundo físico, quanto mais profundamente entramos nas leis da natureza, mais parece que o mundo físico quase se evapora e ficamos apenas com a matemática”.[2] Essa ideia torna-se menos inaceitável quando se tem em mente o comportamento estranho dos componentes fundamentais da realidade física: fótons, elétrons etc. Os experimentos realizados com esses elementos subatômicos (como, por exemplo, o da “dupla fenda”), sugerem que, ao se deslocarem, eles percorrem não apenas uma trajetória, mas todas as trajetórias que lhes são possíveis. Vale dizer, um fóton viajando no espaço encontra-se em todos os lugares em que é possível ele estar e, ao mesmo tempo, não se encontra em lugar nenhum. Nos termos da matemática das probabilidades, uma onda luminosa – e a cada fóton “punctual” está associada uma onda – seria um “espaço amostral” ou um conjunto de possibilidades cujos elementos são as trajetórias virtuais de um quantum de luz. Ora, se o fóton percorre todas as trajetórias possíveis simultaneamente (podendo mesmo haver interferência entre elas), então, neste mundo subatômico, o que se entende por possibilidade matemática – elemento de um conjunto denominado espaço amostral – não é um artifício que criamos para preencher as lacunas do nosso conhecimento do real; ao contrário, trata-se de um ente “real”, algo que existe de fato neste nível da realidade. Do mesmo modo, também nessa nanorrealidade em que o virtual é real, o contrafactual é factual e o que pode ser efetivamente “é”, abstrações matemáticas como “espaço amostral” (conjunto de possibilidades) e “eventos estatísticos” (subconjuntos do espaço amostral) também são entidades concretas que se manifestam como onda: onda de probabilidades. Em suma, se, no mundo “newtoniano”, os entes matemáticos afiguram-se a todos nós como ficções úteis, no microcosmo dos quanta, ao contrário, eles não são pura forma, mas algo que tem “substância”: são entes concretos, reais, cuja existência pode ser indiretamente observada ou inferida a partir da análise do comportamento de um único fóton, de um elétron singular ou mesmo de partículas mais massivas como um próton ou um nêutron.[3] Sim, é possível que a racionalidade matemática no que tem de fundamental seja anterior ao universo e que a realidade subatômica consista numa zona de transição entre esta razão fundamental e o mundo em que vivemos, mundo cuja razão é incerta e que se manifesta mais frequentemente como “leis do acaso” (de fato, até a “ciência” da matemática – não devemos confundi-la com o seu “objeto” – não é totalmente precisa, haja vista que, de seus axiomas, não se chega apenas a verdades, mas também a paradoxos). Se assim for, a Deus se poderia atribuir uma existência objetiva. Não se trata de objetividade física, é claro, nem mesmo de objetividade cultural (“objetivo” no sentido de “intersubjetivo”), mas objetividade matemática. A epifania de Deus seria, então, uma fórmula lógico-matemática autorreferente, isto é, autodemonstrativa (Deus como causa sui ou causa de si mesmo) e da qual se inferiria a lei física fundamental do universo em que vivemos, se não as de muitos outros — afinal, nosso universo particular pode ser apenas um entre muitos outros universos possíveis, todos coexistindo de certa maneira. Mas não é preciso denominar de Deus essa razão-de-ser imanente ao mundo ou, talvez, anterior a ele. Eu próprio não a chamaria assim, atitude esta que me distancia dos místicos e dos teólogos. Não a designaria por este termo porque considero o significante “deus” como tendo um valor essencialmente afetivo. Considero-o um termo que reflete particularidades da condição humana e não uma forma lógica que designa algo geral da natureza “exterior”. Pois, para nós – uma espécie de macaco que retém na idade adulta muitos caracteres da infância, inclusive psicológicos, como, por exemplo, a dependência emocional na relação com os genitores – Deus é, antes de tudo, o substituto dos pais, ou melhor, a sua metáfora. Deus é um significante intrinsecamente ligado a outro significante (pais) que por sua vez significa “aqueles que nos geraram e que cuidam de nós”. Ora, dos pais o que mais nos importa não é o fato de eles nos terem gerado, mas o cuidado que nos dedicam, sua proteção, amor, o fato deles serem nossos provedores. Logo, não se nomina “Deus” essa razão fundamental que tanto se procura – às vezes com o mesmo desespero das crianças que se perdem da mãe – apenas porque ela gerou o universo e, portanto, em última análise, também nos gerou. Quem chama de Deus seja a Razão-de-ser do universo ou o próprio universo como um todo está pressupondo que essa razão e esse todo têm alguma preocupação ou interesse por nós e que a felicidade dos homens é necessária para a harmonia universal. Não creio que seja assim. Deem, portanto, a essa Fórmula que explica o porquê de haver algo e não nada o nome que quiserem. Pode ser O Princípio Universal, A Razão-de-Ser, O Ser Necessário, A Geratriz da Natureza ou, simplesmente, A Fórmula. Mas convém escrever esses termos e expressões com iniciais maiúsculas, como fazemos com a palavra Deus. Seria um modo de sinalizar e de reconhecer a continuidade que há entre a fase mística e a secular desta eterna busca do sentido – desta procura ora esperançosa, ora desesperada, por uma simetria de reflexão entre o pensamento e o ser. Postscriptum — Sobre a intuição matemática Para Immanuel Kant (1724–1804), os enunciados matemáticos não são tautologias estendidas — sentenças analíticas cujos predicados apenas repetem, de modo implícito ou “confuso”, o que já está contido nos sujeitos. Ao contrário, em sua obra Crítica da Razão Pura, o Filósofo sustenta que a matemática só se ocupa com “objetos e conhecimentos que podem ser representados na intuição”; que “todos os juízos matemáticos são, sem exceção, sintéticos” — sintéticos a priori. Significa dizer que o pensamento matemático, baseando-se em axiomas derivados de propriedades da intuição pura e, ademais, operando com a ajuda recorrente da intuição – i.e., do raciocínio por analogia (abdução), da imaginação geométrica, da orientação por critérios estéticos (a beleza das simetrias) – desenvolve o seu próprio objeto; acrescenta, no decorrer do tempo, qualidades novas ao Constructo; produz, constante e cumulativamente, conhecimentos inauditos.[4] Admitindo-se, portanto, a existência da intuição matemática (a propósito, uma das conclusões dos teoremas da incompletude é que a verdade matemática – ou melhor, a de qualquer sistema formal de axiomas – ultrapassa, de certo maneira, a demonstrabilidade), isto posto não é insensato conjeturar que dela derive uma intuição mística; que, de acordo com algumas correntes da filosofia antiga, entre as quais o estoicismo grego, é possível o acesso por apreensão direta (katalêpsis) de um e outro juízo verdadeiros (phantasia kataleptikê), verdades estas não triviais. Ora, Gödel “mostrou” uma proposição aritmética – a fórmula Pk(K) – cuja verdade é “óptica”, apesar de inexistir regra aritmética que a demonstre. Dadas as conclusões, cogita-se que a revolução gödeliana reintroduziu, no campo do saber possível, determinada variedade do pensamento místico, certamente a com menos ruídos folclóricos e dissonância máxima da mimese mágica: o misticoidismo — que a prova Pk(K) da verdade indemonstrável é razão suficiente para que a Mystica seja vista com deferência, não só pela perspectiva da moral de convivência – o devido respeito às opiniões diferentes – como, também, pelo restrito prisma da Gnosiologia. Sobre Kurt Gödel, era esse filósofo um platônico convicto, e se platonismo não é misticismo, a afinidade entre ambos configura-se patente. Aliás, famosa é sua versão do argumento ontológico favorável à existência de Deus, elaborada no rigor da lógica simbólica. Quanto aos seus teoremas da incompletude, numa carta à mãe escrita em 20 de outubro de 1963, ele afirmou com regozijo: “É de esperar que, mais cedo ou mais tarde, minha prova se torne útil à religião, pois isso se justifica em certo sentido.” [5] BULCÃO NETO, Manuel Soares. As esquisitices do óbvio. Fortaleza: APEX, 2005, 81-90 p. — Nova versão do ensaio Magia, misticismo e matemática. [1] BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 45. [2] PENROSE, Roger. O grande, o pequeno e a mente humana. São Paulo: Ed. UNESP, 1998, p. 19. [3] A onda-de-probabilidades dos quanta não como noema (produto do pensamento), mas como onda-matéria — “matéria” no sentido filosófico e leninista do termo, isto é, objeto que existe independentemente da consciência. [4] Ver Dicionário Kant, de Howard Caygill (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000, verbetes Intuição, Juízo analítico, Juízo sintético a priori, Matemática e outros). [5] Apud GOLDSTEIN, Rebecca. Incompletude: a prova e o paradoxo de Kurt Gödel. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.162. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário