“Pelos interesses misteriosos de grandes ideias (a Pátria, a Raça, a Letra Sagrada…) os homens se desindividualizam, submergem felizes na indiferença das massas, infligem sofrimentos indescritíveis nos outros – nos estranhos, nos diferentes –, matam e se matam com volúpia, chegando, inclusive, a despersonalizar esta que é a experiência mais íntima: a morte. Realmente, o que foram os campos de extermínio nazistas senão fábricas cujo produto final era A Grande Morte Anônima e Coletiva? — Judeus, ciganos (…), antes de serem assassinados, eram despojados de suas roupas, barbas, cabelos… em suma, de qualquer coisa que denotasse gosto pessoal e, portanto, uma personalidade. Nos fornos crematórios, a cinza e a gordura dos corpos nus se misturavam numa gosma indiferenciada, impessoal. E todas as almas seguiam para o Céu em legiões difusas, por chaminés, na mesma lufada de fumaça.” (M. Bulcão, A eloquência do ódio)
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Inicio este comentário com uma citação longa, de Alcir Pécora, em “Impasses da literatura contemporânea”: “Quem critica parece um vilão, um estraga-prazer, um intrometido. Quem critica as obras, ainda mais se faz isso com argumentos insistentes, tem qualquer coisa de indecente, de impróprio. Mas, por vezes, a insistência chata é fundamental para pensar um pouco melhor. Não se vai muito longe com um discurso que não admite contraditório, com um discurso de animação de parceiros. Mesmo em casos de parceria, sem alguma disposição para encarar a desafinação, não se vai longe: nessas condições, não há orquestra capaz de desconfiar de si mesma e exigir mais de seus membros. Espanta, pois, ver a intolerância para a crítica, como se fosse alguma traição pessoal. De onde vem essa ideia de parentesco traído? Pessoalmente, não vejo por que o crítico tem de ser animador, parceiro, divulgador ou chancela do escritor. Ele tem de apontar problemas no objeto, pois são problemas do objeto o interesse principal da arte, como da literatura”.
Não sou crítico literário, não tenho formação acadêmica em literatura, não sou estudioso de teorias literárias. Entretanto, tenho dado opiniões como leitor e escritor. E isto tem me rendido algumas malquerenças.
Quem não conhece a expressão “baixar o nível”? Como se sabe, nível é um instrumento de medição. Podemos também lembrar o vocábulo apelação, no sentido popular e usado em expressões como “apelar para a ignorância”, “apelar para a violência”. Em avaliação de qualidade literária de uma obra, também se usam estes termos e expressões: o escritor fulano baixou o nível; sicrano apela para a violência em seus romances.
Na resenha “Da crueldade humana” (relativa à coletânea Contos cruéis) escrevi: “a crueldade é matéria-prima indispensável para feitura de narrativa”. Acho que exagerei ou cometi grave engano: o final da frase poderia ser outro, como “matéria-prima utilizada por muitos escritores, nem sempre com bons resultados literários”. Ora, violência e sexo são motivos frequentes na prosa de ficção de todas as literaturas, porque a vida é sexo e é violência desde o ato da geração dos seres. Dizem até que a guerra é necessária, como limpeza da espécie, controle populacional (Darwin e Malthus abraçados). Também pragas, pestes, epidemias e pandemias seriam defesas da natureza em busca da redução do número exagerado de humanos. Quando surgiu a Aids, muitos disseram ser invenção de cientistas: vírus criado em laboratório. Primeiro para eliminar o maior número possível de africanos. Quando a praga se espalhou pela Europa e pelos Estados Unidos, aí já era tarde demais.
Para Freud, possuímos uma poderosa e instintiva quota de agressividade. Esse impulso de crueldade é natural. Todo ato humano é naturalmente violento. A vida é uma série contínua de atos de violência, do nascimento à morte. Durante toda ela o sexo estará presente. Quem tenta dele se livrar ou se isentar termina com aquele atirador de Realengo ou se morde de culpa como os padres que adoçam as boquinhas de meninos nos seminários e nas sacristias. Como tentaram castrá-los (com ensinamentos religiosos), eles querem provar para si mesmos o contrário: que não são castrados.
Imbuídos dessa vontade de chamar a atenção (como os assassinos e os padres), alguns contistas e romancistas brasileiros se voltaram exclusivamente para a narração de cenas de violência nua e crua. A violência na literatura brasileira (narração de atos de violência) não é de hoje nem de ontem. No romantismo ela é notória, embora tenha se manifestado com mais vigor no realismo e no naturalismo. Mais tarde, reapareceu no “romance de 30”. E se mostrou mais claramente nos anos 60/70 com João Antônio, Plínio Marcos e Rubem Fonseca.
No artigo “Literatura da violência”, Marcelo Coelho esboça um perfil dessa literatura urbana: “Com Rubem Fonseca o tom mudou completamente. O principal empenho literário desse autor, na minha opinião, foi o de eliminar o sentimentalismo com que muitos escritores trataram a vida dos pobres, e mesmo a vida dos malfeitores, no Brasil. A ideia do bandido “romântico”, do Robin Hood, do bandido “poético”, foi substituída por uma abordagem “hard-boiled”, influenciada pela literatura policial americana”.
Após abordar algumas obras de autores da nova geração, o escritor dedica algumas linhas ao que chama de “os principais defeitos da literatura da violência”. A seguir, pergunta e responde: “Quais são eles? Em primeiro lugar, é que com todo o “realismo” (entendido aqui como falar de fatos dolorosos sem eufemismo, sem “literatura”) a escola da violência tende para o alegórico”.
Em análise da obra de Rinaldo de Fernandes, especialmente os contos de O perfume de Roberta, o ensaísta Cristhiano Aguiar assim se manifesta: “A violência é um tema presente em várias das histórias do livro, confirmando uma tendência da nossa prosa contemporânea de refletir sobre este tema. Isto, nos dois sentidos que a palavra “refletir” nos permite: espelhar o real; ou introjetá-lo para, em seguida, transformar este real em questionamento sob forma de linguagem”. E arremata: “Rinaldo de Fernandes, não obstante não abra mão do experimentalismo, preocupa-se principalmente em nos contar boas histórias realistas, salpicadas, aqui e ali, de grânulos de metaforização, ou de elementos fantásticos e absurdos”.
O que distingue o escritor de alto nível daquele pobre narrador de fatos do cotidiano, copiados da imprensa marrom, é exatamente a capacidade de transfiguração do real, de reelaboração da matéria orgânica dos fatos. Ou a aptidão para transpor os limites que separam a realidade da invenção.
Alguns escritores talvez queiram apenas satisfazer o sadismo dos leitores e escrevem como se sádicos também fossem. Poderiam ser bandidos ou policiais. Talvez se realizassem como tais. Outros são aproveitadores. Escrevem assim porque é moda, as editoras publicam, os resenhistas comentam. Poderiam ser comerciantes, deputados, vereadores, agiotas, estelionatários, advogados, juízes, padres, pastores evangélicos. Essa cambada de malfeitores vestidos a rigor. Os ladrões aos quais se referia Antonio Vieira no “Sermão do bom ladrão”, os “ladrões de maior calibre e de mais alta esfera”; “os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com mancha, já com forças roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam”.
São muitos os escritores sem talento para a literatura. Como não têm imaginação, copiam a realidade dos jornais. Escrevem grandes reportagens, a que chamam de romances. Ou pequenas reportagens, quase notícias, a que chamam de contos. Mas há quem os defenda, sob o pretexto de que a língua se enriquece não em gabinetes, torres de marfim, ao redor de bibliotecas, mas nas ruas, com o falar do povo
Durante certo período, o cinema brasileiro se dedicou a mostrar cenas de sexo explícito. As cotas de exibição obrigatória, impostas pelo governo militar, deram espaço para o desenvolvimento desse gênero. Os “cineastas” optaram pelo mais barato e mais fácil. E adeus arte.
A cópia, a reprodução da vida real ocorre, pois, tanto no cinema como na literatura. Para alguns analistas, esse tipo de “arte” é apenas sintoma de uma sociedade doente. Ora, toda sociedade é doente e sempre foi doente. Ou há quem ache sadia a sociedade sueca? Só porque nela o sexo é livre e não há miséria? Ou a islâmica? Só porque o pecado é punido como crime?
Para completar este breve comento, mais um trecho de Alcir Pécora: “Ocorre, hoje, uma impressionante expansão das narrativas no cerne da própria existência. Antes mesmo de existir como evento, a ação já se apresenta como narrativa, como ocorre nos reality show, em que as pessoas, antes de agir, representam ou narram a ação que lhes cabe”. E assim completa o pensamento: “Escrever literatura, para mim, entretanto, é um gesto simbólico que traz uma exigência: a de ser de qualidade. Literatura mediana é pior que literatura ruim, pois, mais do que esta, denuncia a falta de talento e a frivolidade. A literatura decididamente ruim pode ser engraçada, ter a graça do kitsch, do trash, da paródia mesmo involuntária e grosseira: pode ter a graça perversa do rebaixamento. Já a literatura mediana não serve para nada. É a negação mesma da literatura, cuja primeira exigência é a de se justificar (justificar a própria presença) face aos outros objetos de cultura”.
Como isto não é um ensaio, ouso encerrá-lo com alguma confissão: Não escrevo de acordo com a moda. Também não escrevo como os antigos. Não tenho nostalgia. Não seria jamais um José Albano. Nunca fui da moda ou do lugar-comum. Não pertenço à maioria. Não torço para Flamengo, Corinthians ou Ceará, não sou católico (lugar-comum), evangélico (moda) ou muçulmano (atraso). Também não sou das minorias revoltadas, assanhadas ou espetaculosas. Não sou gay, bissexual ou bipolar. Não sou petista e muito menos liberal. Quero ser eu mesmo, embora reconheça influências. Não desse ou daquele escritor, mas de um modo, de um estilo. Quem não as tem? Minhas maiores influências são as minhas, as do meu passado. Como não sou só, minhas memórias são também as dos outros. Até dos que fazem “literatura mediana” e “literatura ruim”. Portanto, todos são necessários, como na natureza: do verme ao leão.
Nilto Maciel
NILTO MACIEL nasceu em Baturité, Ceará, em 1945. Formou-se em Direito pela UFC. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 77 e regressou a Fortaleza em 2002. Editor da revista Literatura desde 91. Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais. Organizou, com Glauco Mattoso, Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977). Participa de diversas coletâneas, entre elas Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por Rinaldo de Fernandes (Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2006); 15 Cuentos Brasileros/15 Contos Brasileiros, edición bilingüe español-portugués, org. por Nelson de Oliveira e tradução de Federico Lavezzo (Córdoba, Argentina, Editorial Comunicarte, 2007); e Capitu Mandou Flores, org. Por Rinaldo de Fernández (Geração Editorial, São Paulo, 2008). Publicou nove volumes de contos, oito romances, um conjunto de poemas e dois ensaios sobre o conto no Ceará.
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