Alan Guth, físico teórico do MIT Autor da teoria do universo inflacionário |
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UNIVERSOS DE LABORATÓRIO
“Deus criou o homem à sua imagem,
à imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou”.
Gênesis 1; 27
No meu breve ensaio “Sobre o critério da verdade”,
afirmei que a existência de Deus é uma dessas hipóteses não passíveis de
refutação ou comprovação empíricas, o que significa dizer que pode até ser que
Deus exista realmente, porém jamais saberemos com certeza.
A hipotética divindade a qual me referi é aquela
versão mais elaborada dos teólogos e de alguns filósofos: o Deus definido por
Anselmo como “algo maior que qualquer coisa que possa ser concebida”, o Logos que explica por que existe algo
(inclusive a sua própria existência) em vez de nada existir, ou mesmo aquele
outro postulado por Hegel: a Ideia, ao mesmo tempo substância e sujeito e que
persegue, através dos homens, a consciência plena de si mesma – o Espírito
absoluto.
Mas agora vou mais longe: digo que aquela história
bíblica de um deus antropomórfico – um deus com forma e paixões humanas criador
do Universo – mutatis mutandis não é
um mito infundado, mas igualmente uma
hipótese, ou seja, uma conjectura aceitável pela ciência até o momento (uma
hipótese, se não científica, ao menos cientificamente fundamentada).
Com efeito, a física moderna não descarta a possibilidade
de o Universo ter sido criado por uma inteligência de carne e osso que longe
está de ser onisciente. O renomado cientista norte-americano Alan Guth,
professor de Física do Massachusetts Institute of Technology (MIT), em seu
livro O universo inflacionário
(Editora Campus), argumenta exaustivamente, durante todo um capítulo (capítulo
16 – Os Buracos de Verme e a Criação de Universos em Laboratório; pp. 210-22),
que não é impossível que, num futuro distante, uma civilização superavançada
venha a criar um novo sistema matéria-gravitação – isto é, um “novo” universo –
independente do nosso.
Bastaria, para tanto, segundo Guth, apenas 25 gramas
de matéria, além de tecnologia para comprimir essa massa até que se atinja a
densidade de 1080 gramas por centímetro cúbico. O que se tem, então,
é o que Guth denomina de uma bolha de
falso vácuo.
Com essa bolha de falso vácuo criada num laboratório
podem acontecer duas coisas: a) o seu imediato colapso e surgimento de um
“microburaco negro”, o qual se evaporaria em menos de um milionésimo de
segundo, ou então; b) o falso vácuo “tunela”, começa a se expandir
exponencialmente, originando, desta forma, um outro universo isolado, isto é,
separado do nosso (um outro espaço-tempo), e que evoluirá do mesmo modo que o
nosso evoluiu.
O grau de probabilidade do colapso é muito superior ao
do tunelamento, pois, afinal de contas, tudo que é bom é raro. No entanto,
repetindo-se a experiência um número X de vezes, o tunelamento necessariamente
ocorre.
Ademais, quanto maior a densidade alcançada, maior é o
grau de probabilidade do tunelamento. Não se sabe se é possível densidades de
falso vácuo superiores a 10 80 gramas por centímetro cúbico. Mas,
segundo Alan Guth, “se existir um estado de falso vácuo (...) de
aproximadamente 1093 gramas por centímetro cúbico (...) para essa
densidade, a resposta de nosso cálculo de probabilidade seria de
aproximadamente um – um novo universo seria criado praticamente a cada
tentativa!” (ibidem, p. 222)
Duas observações importantes: a) o surgimento do universo-filho em nada afeta o universo-mãe; b) embora a bolha inicial
de falso vácuo tenha sido originada pela compressão de apenas 25 gramas de
matéria, após alguns bilionésimos de segundo de expansão exponencial a
quantidade de massa no novo universo é tão grande quanto a que existe no
“nosso” universo observável. – No livro mencionado, Guth dá uma explicação
acessível ao leigo de como isso é possível.
É, pode ser que o universo em que vivemos seja um
produto deliberado de criaturas inteligentes e inventivas como nós, seres
humanos. Também é possível (porém pouco provável) que a humanidade evolua para
uma supercivilização com tecnologia que a permita produzir bolhas de falso
vácuo em série e, por conseguinte, universos a granel.
Talvez o universo seja necessariamente o produto de uma inteligência “mundana”, isto é,
talvez não exista outro meio de um sistema matéria-gravitação surgir a não ser
desta forma, através de uma intervenção consciente, isto é, deliberadamente. Se assim for, então o
homem com sua inteligente rara não é, conforme afirmou Sartre, uma “paixão
inútil” – se a natureza, que produz seres inteligentes (conscientes), é por sua
vez produto desta mesma inteligência, então a vida complexa tem propósito,
razão de ser.
É matéria evoluindo para espírito e espírito criando
matéria desde o infinito pretérito e até o infinito futuro.
Mas talvez essa cadeia não seja infinita nem linear.
Pode ser que a corrente se feche como um círculo. Pensei nesta ainda mais
bizarra alternativa após ler uma novela do escritor brasileiro Sérgio
Sant’Anna, A Senhorita Simpson, em
que o autor fala de uma seita mística que postula a inexistência de Deus, pelo
menos por enquanto. Isto é, “Ele (Deus) está sendo gerado, muito aos poucos,
por todas as energias atuantes no Universo, inclusive aquelas que emanam de
nós.” À pergunta “mas se Deus ainda não existe, quem criou este Universo
anterior a Deus?”, seus fieis respondem: – “Ele mesmo … Deus, depois de pronto,
terá criado todo o passado que O gerou.” [1]
Imagine-se o improvável: que a humanidade sobreviva a
todos os antagonismos que a laceram; que a História, contrariando todas as
expectativas, culmine numa superavançada civilização; que nesta civilização de
abundância os homens (ou super-homens), livres desse grilhão que é a busca da
satisfação das necessidades prático-utilitárias, dediquem o grosso do seu tempo
à ciência e a atividades lúdicas criativas; que essas criaturas inteiramente
dedicadas ao ócio criativo consigam desenvolver uma engenhoca (algo parecido
com um gigantesco acelerador de partículas) capaz de comprimir um punhado de
matéria até a densidade de 1093 gramas por centímetro cúbico e que,
enfim, ponham-na para funcionar, gerando deste modo uma bolha de falso vácuo
que, ao se expandir exponencialmente, dará origem a um novo universo para lá
das fronteiras do nosso.
Imagine-se, agora, o esdrúxulo: no momento em que se
cria a bolha de falso vácuo, o tempo completa uma curva fechada, de sorte que o
universo recém-criado não é novo coisa nenhuma, mas este mesmíssimo universo em
que vivemos! — Pode parecer estranho uma situação em que o efeito antecede a
causa; mas o enigma se desfaz quando substituímos a ideia do tempo linear pela
do tempo circular. Pois, no contexto de um tempo circular, não faz sentido falar
em passado, presente e futuro quando se considera o tempo em sua totalidade.
Logo, não faz sentido aplicar à relação entre causa e efeito o princípio da
anterioridade da causa. Na verdade, quando o tempo é circular, o efeito nada
mais é que a causa mais remota daquilo que imediatamente o causou.
Mas, deixando por enquanto a pura especulação de lado,
o que se sabe é que vivemos num sistema matéria-gravitação “isolado” que surgiu
não se sabe como e que, de acordo com nossas medições mais recentes, vem se expandindo
há mais de 13,4 bilhões de anos. Essa imensa bolha espaçotemporal, malgrado
evolua no sentido da máxima desordem, compreende alguns subsistema “abertos” em
que a seta termodinâmica do tempo aparece invertida (desordem ® ordem). Como, por exemplo, o planeta Terra.
Este pequeno planeta azul onde, há cerca de 4,5
bilhões de anos, surgiu, em alguma poça d’água ou na circunvizinhança de alguma
fonte hidrotérmica dos abismos oceânicos, uma macromolécula formada por açúcares, grupos de fosfato e bases nitrogenadas
capaz de produzir réplicas de si mesma num ritmo alucinado.
E tão furioso era o ritmo que, em pouco
tempo (algumas dezenas de milhões de anos), o material orgânico necessário para
a replicação tornou-se escasso. Foi quando então surgiram os primeiros
“demônios”, isto é, algumas macromoléculas “vivas” sofreram mutações ocasionais
que, para a sua sorte (e o azar das demais), transformaram-nas em organismos
especializados em devorar outros organismos vivos. Foi nesta época remotíssima
que o protoplasma vivo começou a experimentar algumas sensações de desconforto
muito parecidas com as que hoje denominamos de fome, medo e dor.
E como somente os mais “espertos” escapam
dos demônios; e como, também, apenas os demônios mais argutos conseguem
alcançar suas refeições cada vez mais espertas, a evolução dos seres vivos (ao
menos entre os heterótrofos) se deu no sentido de uma complexização crescente
do sistema nervoso e, por conseguinte, da inteligência.
Dito em outros termos, a biomassa, na
medida em que devorava a si mesma, foi produzindo demônios cada vez mais
inteligentes, até que, da sua entranha irrompeu – em apenas uma única linhagem
de animais – um demônio bípede dotado de uma inteligência rara, extravagante,
muito maior do que a necessária para a sua reprodução — inteligência presciente
e consciente.
A consciência, filha da dor, do medo, do
engodo tático e do assassínio de centenas de bilhões de seres vivos (ao longo
de toda a história da vida), é esse excesso de inteligência que o demônio
bípede, sem saber o que fazer com ela, ora a desperdiça na elaboração de
delírios genocidas e no cultivo de cogumelos de fogo, ora a utiliza na produção
de coisas belas e boas, como, por exemplo, o Moisés de Miquelângelo, as
sinfonias de Beethoven, a filosofia de Kant, as instituições democráticas de
governo, o sonho de liberdade e de igualdade. — E que, num futuro remoto,
talvez venha a criar algo incomensuravelmente grande, ao mesmo tempo terrível e
maravilhoso: um universo.
Mas tudo isso não passa de especulações
baseadas em hipóteses científicas de fronteira ainda não corroboradas
empiricamente — apenas conjecturas de quem, em vez de empregar a pouca
inteligência que tem para ganhar dinheiro, fica aí, à toa na madrugada, fumando
cigarro e entregue ao livre exercício de encadear ideias.
Manuel Bulcão
Julho/2000
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Postscriptum — Inteligência rara
Em 1980 um grupo de cientistas fundou o
Projeto SETI (Seath for extraterrestrial
intelligente). Seu objetivo era, mediante radiotelescópios, detectar sinais
eletromagnéticos emitidos por civilizações de outras regiões do Cosmo.
Partia-se do princípio de que, onde houvesse vida, a alta inteligência
necessariamente surgiria, visto que esta confere à espécie que a possui maior
adaptabilidade ao meio – “Mais inteligente é melhor”, sentenciou Carl Sagan,
líder deste Projeto.
O biólogo Ernst Mayr, valendo-se da
própria história da vida na Terra, demonstrou, entretanto, que essa premissa
setiana é falsa. Afirmou que, decerto, a seleção natural opera ao mesmo tempo
em vários ramos taxonômicos – filos, classes, ordens… – favorecendo o
surgimento e desenvolvimento de certos órgãos, como as estruturas
fotorreceptoras (os olhos), “adquiridas de modo independente pelo menos
quarenta vezes no reino animal”. Não vislumbrava o Cientista, porém, nenhuma
pressão seletiva conduzindo à alta inteligência, uma vez que, entre as milhões
de linhagens existentes no Planeta, tal qualidade só surgiu em uma delas: a
hominídea. Depois de apontar alguns acidentes sem os quais não teria vingado
nossa estirpe, Mayr concluiu: “Como é extremamente improvável a aquisição da
alta inteligência”, “como era infinitesimal a chance de isso ocorrer!”.
Agora, a pergunta: dado o seu suposto
valor adaptativo, o que explica a raridade da alta inteligência? — Como uma das
razões, alguns biólogos evolucionistas apontam o seu elevado custo em consumo
energético (de fato, nosso cérebro demanda 20% de todas as calorias que o
organismo consome). Aliás, em uma pesquisa realizada com moscas-das-frutas,
Frederic Mery da Universidade de Friburgo descobriu que, em condições de grande
escassez de víveres, as drosófilas com inteligência acima da média vão-se
rareando até desaparecerem por completo. Infere-se desta experiência que, se os
benefícios da inteligência a partir de certo nível não compensam o preço a ser
pago, a seleção natural não irá favorecê-la, muito pelo contrário.
Outro custo da alta inteligência foi
recentemente descoberto por James Sikela et
al. da Universidade do Colorado. Segundo Sikela, a sequência de cópias do
gene DUF1220 que determina o desenvolvimento do cérebro é a mesma que, com
arranjo ligeiramente alterado, gera doenças mentais graves, como o autismo e a
esquizofrenia. Significa dizer que os indivíduos portadores dessas moléstias
são o preço que a espécie humana paga pelo mecanismo gênico que permite a
geração da sua inteligência sem igual, capaz de produzir computadores, teorias
cosmológicas e… antipsicóticos.
Inteligência é capacidade de processar
informações e, de acordo com a teoria da complexidade, tal capacidade é máxima
na fronteira entre a ordem e o caos. Isso explica a frágil condição do Gênio,
ilustrada pelas loucuras terminais de Gödel e Nietzsche. A propósito, o autor
de Zaratustra intuiu bem esse
“equilíbrio distante” ao escrever que “é preciso ter um caos dentro de si para
dar à luz uma estrela bailarina”.
De resto, embora muito valorizada, a
inteligência é subutilizada pela maioria das pessoas, por medo do caos ou
devido ao custo energético. Aliás, segundo o antropólogo Leslie Aiello, o
homem, para pensar, retira energia dos intestinos, que são pequenos em
comparação aos dos outros primatas. Por isso que muita gente, obedecendo ao
princípio do menor esforço, em vez de realizar escolhas com o cérebro, prefere
tomar decisões diretamente com as tripas. Outros, pelas mesmas razões, entregam
seu destino ao acaso das cartas, búzios e do I Ching – ou então mantêm a mente
operando no modo religioso, que é de baixa energia.
Como diz mesmo a canção? “Si quieres ser feliz como me dices / No analices
/ Ah, no analices.”
Manuel Soares Bulcão Neto
Crônica
publicada no jornal Diário do Nordeste, em 05/09/2010.
[1] A propósito, há uma versão
da experiência da dupla fenda de Young, elaborada pelo físico John Wheeler
(Princeton, 1979), cujo resultado sugere a existência de um bizarro fenômeno, a
“causação retroativa”. Consiste este fenômeno na possibilidade de um observador
atual, através da sua atividade cognitivo-experimental, vir a ser responsável
pela geração de eventos situados num passado remoto, de modo que “a mente pode
ser responsabilizada pela criação retroativa da realidade – mesmo de uma
realidade que já existia antes de haver gente”.
Uma explicação mais detalhada desse experimento – numa forma “digerível”
pelo leigo – é apresentada pelo físico teórico Paul Davies em seu livro de
divulgação científica Deus e a Nova
Física (Lisboa: Edições 70, 2000, pp. 111-129).
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