Manuel Soares Bulcão Neto (1963 - Ó meu Deus!) |
Pois o SENHOR, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores,
o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita
recompensas; que faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe
pão e veste. Pelo que amareis o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra
do Egito. (Deuteronômio 10; 17-19)
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COMO CONVIVER COM O OUTRO?
(ENTREVISTA DE MANUEL SOARES BULCÃO NETO PARA
O JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE EM 29 DE
SETEMBRO DE 2009)
Por Dellano Rios
DN - Os fenômenos históricos que, me parecem, são os motores desta reflexão
estão ligados aos regimes totalitários do século XX. O que estas manifestações
trouxeram de novo para a história do ódio ao diferente?
Manuel Bulcão - Trouxeram a luta de extermínio decorrente da incompatibilidade entre
povos ou grupos sociais que se julgam universalmente “eleitos”: os judeus por
IHWH, os germânicos pela seleção natural (considerada reles instrumento dos
deuses nórdicos e de outros seres divinais do misticismo oriental), os eslavos
pelos pan-eslavistas (que consideravam essa raça como o novo Cristo do “Eschaton”)
e a “vanguarda” comunista pelas férreas leis da História.
DN - No caso dos regimes fascistas, costuma-se falar em racionalidade, mas
sem que se entre num consenso. Ora são existes que, num extremo racionalista,
não são freados por uma moral; ora, são arroubos de irracionalismo. Na sua
opinião, de que lado ficaria o regime nazista?
Manuel Bulcão – Alguns pensadores sustentam que os totalitarismos do séc. XX ou são o
desdobramento inevitável da razão iluminista, ou, como defende Zygmund Bauman, uma
possibilidade que surgiu com a racionalidade moderna (possibilidade esta que
não havia antes). Discordo desses pontos de vista. As ciências e sua tecnologia
apenas incrementaram, de forma exponencial, tanto as forças produtivas quanto
as destrutivas; vale dizer,
tornaram-se também instrumentos das
inextirpáveis pulsões irracionais humanas. A propósito, para embasar esta
suposta relação “necessária” entre racionalismo e totalitarismo, cita-se os
campos de extermínio nazistas como “fábricas modernas” ou verdadeiras
“indústrias da morte”. Esquece-se, no entanto, que não menos que 40% dos judeus
mortos no Holocausto foram assassinados por métodos arcaicos, nada modernos,
como fuzilamentos, trabalhos forçados até a morte etc. Além do mais, é
importante lembrar que o Partido Nazista praticamente surgiu de uma seita
místico-esotérica, a Casa Thule; que seus ideólogos foram fortemente
influenciados pelo irracionalismo de Nietzsche (este filósofo, em sua obra Vontade de Potência, declara-se o
“antidarwin”) e outros irracionalismos mais primitivos, como a teosofia de H.
P. Blavatsky, o armanismo, a teozoologia, a judeofobia cristã etc.
DN - A Ditadura Militar se assemelha a casos como do nazismo?
Manuel Bulcão - Há pontos em comum, como o autoritarismo e o
patriotismo. As diferenças, entretanto, superam em muito as semelhanças; pois o
nazismo foi, sobretudo, um totalitarismo, um racismo político e uma concepção
de mundo. Aliás, como afirmou Lenin, uma ditadura militar ou “pessoal” não é
necessariamente a negação cabal da democracia (seja “burguesa” ou
“proletária”), consistindo, no mais das vezes, em regimes que se autoproclamam
“de exceção” ou, conforme Roberto Campos, “biodegradáveis”: “uma magistratura
extraordinária adaptada a épocas e circunstâncias excepcionais” (Norberto
Bobbio), e que “pode ser boa ou má” (Maquiavel). Trata-se, pois, de uma forma
de governo bem distinta da “tirania”, caso tanto do stalinismo como do
hitlerismo. A tirania, segundo os clássicos, é uma forma má de governo por
excelência.
DN - Ao se falar em racismo ou alofobias, como você amplia no livro, é
comum ver uma das partes ser retratada como vítima. No entanto, lembro do caso
judeu/palestino, onde me parece o ódio é canalizado nas duas direções. Este
embate de alofobias era mais comum na antiguidade que nos nossos dias?
Manuel Bulcão - O fato de o Homo sapiens
sapiens ser a única espécie do gênero Homo,
e este o único gênero da família Hominidae,
talvez isso indique, como apontou J. Monod, que o struggle for life de Spencer (luta intraespecífica – entre raças e
grupos – de vida ou morte) foi um dos principais fatores da seleção da espécie
humana. Sim, provavelmente fomos nós os
assassinos dos nossos irmãos sapiens
neanderthalensis e dos nossos primos australopithecus.
Diga-se, ainda, que, segundo os antropólogos R. Wrangham e D. Peterson (O macho demoníaco, 1998), cerca de trinta
por cento dos indivíduos das tribos neolíticas ou de caçadores-coletores que
ainda existem (caso dos Ianomâmi) morrem em escaramuças intertribais (esse
índice é idêntico ao dos chimpanzés). Demais, não são poucos os povos
primitivos que se designam como “homens verdadeiros” ou “gente de verdade” (por
exemplo, os Suruí, os Paracanâ, os Crenacarore…), o que significa que o Outro
não é considerado como igual ou pertencente à mesma espécie. Tudo isso são
indícios de que os choques de alofobias eram muito mais comuns no passado. Não
obstante, os choques que se verificam hoje são muito mais mortíferos e
impressionáveis. Mortíferos porque, em vez de arco e flecha, os conflitantes
atualmente se enfrentam com fuzis, metralhadoras, mísseis etc. E
impressionáveis porque, graças ao surgimento das religiões universalistas (que
proclamam a igualdade de todos perante Deus) e do iluminismo, valores tais como
igualdade, liberdade e fraternidade tornaram-se componentes do bom senso de
toda a humanidade. Por isso que, em relação ao litígio entre judeus e
palestinos, não há apenas torcedores raivosos, mas também uma vasta gama de
indivíduos e grupos sociais (cristãos, judeus, muçulmanos, ateus…) que se
propõem o papel de árbitro e que, em solidariedade a essas duas etnias, anelam
não a paz do vencedor ou do cemitério, mas a paz do consenso.
DN - Quais os riscos da posição antirrascista, de afirmação desse ou
daquele grupo específico, tornar-se, ela também, uma postura racista?
Manuel Bulcão - Existe um antirracismo “universalista” que, em
vez de celebrar a diversidade humana (nosso politipismo e polimorfismo) e a
igualdade na diferença, pretende superar todos os tipos numa síntese racial
superior. Os “antirracistas” da Ação
Integralista Brasileira (Plínio Salgado, Gustavo Barroso entre outros) elegeram
o caboclo como “a síntese de todas as raças e representante da união cristã dos
povos”. Ora, esse antirracismo não passa de um racismo invertido, ou melhor, do
racismo do mestiço. Nos EUA, há os ideólogos do melting-pot, que almejam fundir no caldeirão da mestiçagem as raças
que existem nesse país, de modo a criar “o novo homem americano” (isto é, uma
nova raça). Trata-se de outro racismo travestido do seu contrário. Obviamente
que há, também, o risco de minorias – ou mesmo maiorias – “de cor” oprimidas
pelo racismo dos brancos virem a reagir irracionalmente e, assim, criar o seu
próprio racismo, fundado no ressentimento.
DN - Me parece que, por vezes, é difícil para muita gente associar
reflexões sobre manifestações extremas do ódio (caso dos já citados regimes
totalitários) com práticas cotidianas, onde o Outro é menos discernível. Penso
numa mobilidade dessa alteridade, como no caso dos fumantes. Leis de
restrição ao fumo, como em São Paulo que aboliu mesmo a existência de
fumódromos, são manifestações alofóbicas?
Manuel Bulcão – Penso que sim. Infelizmente, a
“instituição” do bode expiatório ainda é necessária para muita gente (fato que
muitos políticos manipulam), e me parece que os fumantes, atualmente, estão
sendo investidos desta função, principalmente por aqueles que sofrem de uma
doença grave e mentalmente degenerativa: a mórbida obsessão por saúde e corpo
perfeitos (esses narcisistas não hostilizam apenas os fumantes, mas também os
gordos, ambos tratados como desviados morais).
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Entrevista publicada no dia do
lançamento do livro A eloquência do ódio:
reflexões sobre o racismo e outras alofobias (BULCÃO NETO, Manuel Soares. São
Paulo: Editora LivroPronto, 2009, 276 pp.).
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