Em meu ensaio Sombras do Iluminismo, escrevi: “A atividade artística é capaz de realizar transfigurações paradoxais: pode evocar o feio e repulsivo através de belas e atraentes metáforas; pode transformar a cadência triste do choro ou do lamento em agradável melodia (p.ex., um blues); pode moderar a dor da solidão apenas fazendo-a rimar com multidão. Também transforma os infortúnios da vida em arte trágica (vamos ao cinema e ao teatro para nos 'deleitar' com a infelicidade de Otelo, Hamlet, Willy Loman etc. — Segundo Edmund Burke, 'o deleite [delight] se nutre ao mesmo tempo de prazer e dor'). ‘O Poeta de Meia-Tigela’, nos três poemas transcritos, dá forma estética à sua tristeza, tornando-a, assim, ‘metabolizável’ . Demonstra-nos, com maestria, o quanto a poesia é necessária para que possamos percorrer, com leveza e até o fim, nosso caminho de pedras.” (Manuel Bulcão)
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Nesta semana quase fiquei doido. Ou fora do senso normal, comum. Se tivesse ocorrido o pior, a culpa teria sido exclusivamente minha. Pois quem me mandou escrever (remoer, imaginar, rabiscar) um conto (esboçado há alguns meses) e, ao mesmo tempo, ler (com intenção de comentar) Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas? É demais para minha pobre encanecida pequena cabeça.
Do conto não falarei mais que isto. Não irei além do título, para não dizerem depois que o roubei em mesa de bar. A remexer as entranhas da composição poética do Poeta de Meia-Tigela me empenharei, sim, no que estiver ao meu alcance. A partir do título. Quem foi Bárbara e quem é a Bárbara do poema? Só lendo o livro, para saber.
Como outros épicos (para Oswald Barroso, “uma epopeia em que, no poeta, a ousadia de uma juventude, ainda recente, se junta à severidade de uma maturidade já próxima”), o do Poeta de Meia-Tigela se inicia com uma apresentação do tema, em três estrofes de dez versos e duas de cinco: “Uma vez era o anseio de Brasil / Uma vez era a sanha da Nação / Uma vez a revel insurreição” (...). Refere-se à “breve República nativa”, a chamada Confederação do Equador de 1824. Lá para diante (estância 14), outra referência ao tema: “Ao começo chegamos do Poema / Ao princípio da história, não, jamais / inicia-se a história muito atrás”. Algumas linhas adiante se lê melhor esclarecimento: “Eis que somos chegados ao Relato”. E se descobre onde o poeta buscou arrimo: “Também sendo Rachel símbolo, emblema / Lutadora exemplar de alma iracema / Emprestamos de seu Memorial / O prenome do nosso Recital, / Ao começo chegamos do Poema”. Assim, a estância se inicia e se encerra com o mesmo verso. Além disso, a obra é chamada de relato, drama (ver rubrica na série 25) ou memorial (em homenagem a Rachel de Queiroz). Na mesma peça se dá a apresentação da heroína ou a primeira aparição de Bárbara: “Alguém há, cuja origem e viver / Representam o acordo entre os estados / Do Ceará, Pernambuco, rebelados: / Da vetusta família de Alenquer / Ela, Bárbara, bárbara mulher /Na cidade de Exu nascida, vinda” (...)
O poema (o todo ou o conjunto de pequenos poemas, aqui chamados de séries ou estâncias) é apresentado como um painel ou um “memorial”, sem ordem cronológica ou com retrocessos (ver flashback em “Discurso de Martiniano”.
O Meia-Tigela faz uso constante dos mais diversos recursos de linguagem e de discurso. Até a repetição de estâncias (com outras palavras), como se vê nas séries 16 e 17. Aqui e ali, o poeta apresenta rubricas, em prosa: “Todos brindam”; “todos riem”, etc. Numa delas, anuncia: “Findo o entreato, retornemos ao drama”. Chega a fazer proposta de retrocesso narrativo (“voltemos um pouco”). Neste caso, se atém ao tempo da narrativa e da vida: “Até onde é preciso avançar / Se se quer às origens chegar?” O que equivale a uma negação da linearidade em arte.
As rimas são de variados tipos: toantes, raras, ricas, imperfeitas, etc., como se veem em juntos/ muitos/ bestunto/ vagabundos; soluce / convulso; clavinotes / Forte; séquito / decrépitos. Isto só se consegue pelo enriquecimento do vocabulário, pelo exercício exaustivo do verso rimado, pela busca da originalidade. Além da diversidade de modelos de rimas, se vale dos diversos modelos de métrica. Assim como de metáforas e outros artifícios poéticos (“em flux das espingardas”, “sempre um estado súbito”) e de linguagem, com a invenção de palavras (começação, domixílio, Iansanta). Oswald Barroso se refere a um bom abuso de certas liberdades: “Abusa apropriadamente dos jogos de palavras, das aliterações, das fricções sonoras, das inversões”. Leia-se isto: “Já teve, não tem / Nada, nenhum bem / Tomaram-lhe os trens / Tralhas e teréns”. Essa cadência, esse ritmo, essa sonoridade aparecem muitas vezes, como nas rimas em “ares” da série 33. Há também prosa no meio dos versos, como se vê na estância 32, intitulada “Fuga e recaptura dos republicanos malvados”. Arte de altíssimo nível verbal se encontra no meio desse tropel, como a série 48, “Dona Bárbara”.
Posso até estar à beira da prática rotineira do nonsense, mas não me arrisco a ir além do que escreveram Diogo Fontenelle (nas abas do volume), Gilmar de Carvalho (apresentação da 2ª edição da obra) e Oswald Barroso (prefácio da primeira). Gilmar fala em “embevecimento” e trata o Memorial como “algo que não é vanguarda, que não está preso aos modismos, mas que atualiza e mantém a tradição”. Que tradição é esta? O próprio poeta lembra Caetano Ximenes Aragão, Cecília Meireles (“Romanceiro da Inconfidência”) e João Cabral (“Auto do Frade”). Sem deixar de fora o “registro do jogral”, os folhetos de cordel e a poesia contemporânea e experimental. A observação assim se condensa: “A enunciação do Meia-Tigela tece níveis delicados e tensos que vão do edito, passam pela voz das ruas e chega, sem frescuras, à colagem. O resultado é surpreendente”. Então temos uma Bárbara de Alencar heroína da História e da Poesia épica, personagem extraída da tradição oral (histórica) para se transformar em personagem da literatura.
Nilto Maciel
Fortaleza, setembro de 2011.
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